
A memória silenciosa | Entrevista com Moacir Fio
Ele já me fez, em Fortaleza, a seguinte pergunta: O que é a realidade? Quase um ano depois, em Paraty, durante a FLIP de 2023, devolvi a pergunta pra ele. As respostas ficam na memória de quem as ouviu. Ou não. A memória, inclusive, foi um dos temas abordados na nossa conversa, que você confere logo abaixo.
O escritor, músico e editor Moacir Fio publicou, pela Editora Patuá, seu primeiro livro, Pequenas Hemorragias. Esse livro de contos, que posso dizer sem hesitar que já está entre os melhores do ano, talvez da vida, é o centro do nosso bate-papo.
Representando a memória em todas as suas transformações e complexidades, Moacir Fio, nos contos de Pequenas Hemorragias, constrói histórias que abalam certezas e geram cada vez mais dúvidas sobre o que de fato aconteceu. Ao leitor, como aos personagens, só resta o silêncio, o silêncio que se faz quando se percebe que o que se tem diante de si é a vida. Ou a realidade. Mas não a vida retratada nos conformes, com um passo depois do outro, com causas e consequências claras e lógicas. Em Pequenas Hemorragias, o silêncio surge porque a vida e a realidade nos perguntam: o que eu sou?
Caixa-preta é um site de entrevista com escritores e escritoras. E sendo caixa-preta “qualquer sistema, organismo, função, etc., cujo funcionamento ou modo de operação não é claro ou está envolto em mistério”, representa uma ideia que se aproxima da literatura.
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Em Pequenas Hemorragias, há uma atmosfera muito densa de silêncios e não ditos. Os personagens ou não sabem o que está acontecendo à sua volta, ou, se sabem, preferem esconder. Assim também fica quem lê, pendurado e preso às histórias pelas coisas não ditas. Como acontece a construção do silêncio na tua literatura?
Então, Paulo, é muito difícil representar o silêncio na literatura, é sempre um desafio para nós escritores, porque a nossa ferramenta de trabalho é a palavra. E como representar algo onde a palavra não chega, no qual a palavra não vai ser o bastante. E o silêncio está muito presente em Pequenas Hemorragias, eu imagino, porque é um livro sobre memória. Todos os contos, de algum modo, tratam a questão da memória, pelo menos foi essa a minha intenção. E não tem como o não dito, como o silêncio, como a hesitação, não fazer parte da grande ficcionalização que é todas as nossas memórias. O ato de rememorar algo é também um ato de ficcionalizar o acontecido. Essa questão do silêncio, como representar o silêncio, como foi representado, no meu caso, especificamente, na minha experiência em Pequenas Hemorragias, foi através da memória. Inclusive, a maior parte dos contos tem essa perspectiva de relato, muitos deles em primeira pessoa, mas os que não estão em primeira pessoa sempre [estão] sob ponto de vista muito próximo da personagem. O silêncio surge normalmente da incapacidade de representar ou de dizer algo. Eu gosto, inclusive, de pensar que é quase como o silêncio, o interdito ou o não revelado ser também uma representação daquilo para a personagem. A personagem não conseguiu racionalizar uma determinada situação e, portanto, a gente também não tem acesso àquela racionalização em forma de palavra.
Falando em silêncio, você usa como epígrafe de Pequenas Hemorragias versos da poeta argentina Alejandra Pizarnik, que na sua poesia fala muito sobre o silêncio. Existe alguma influência de Pizarnik no que você escreve? E por que esses versos como epígrafe?
“No sé de la infancia
más que un miedo luminoso
y una mano que me arrastra
a mi otra orilla”
Alejandra Pizarnik, Tiempo
A Pizarnik, que é uma das minhas autoras favoritas, é uma das minhas principais influências em termos de estilo, eu colocaria ela ao lado da Ana Cristina César, da Hilda Hilst e do Cortázar. Aliás, tem um outro conto que tem uma epígrafe do Cortázar. E nesse poema dela, os versos que falam sobre infância e memória, e a obra da Pizarnik, que toda também fala muito sobre silêncio, como você bem disse, e tem muito a ver com Pequenas Hemorragias, porque é um livro sobre infância, muito sobre infância. Não à toa, o primeiro conto, “Amigo Morto”, é um conto que trata de uma memória de infância, em quatro personagens diferentes. Então, como ele é um livro que trabalha muito essa questão da memória, acho que faria todo sentido eu colocar uma epígrafe da Pizarnik. Não necessariamente essa, mas acho que quase todos os poemas dela e também. Porque eu tenho um costume, já falei isso em outras entrevistas, eu tenho um costume de escrever sempre com livros abertos, próximos de mim, normalmente são livros de poesia, e muitos dos contos do Pequenas Hemorragias, eu estava lendo a Alejandra Pizarnik enquanto estava escrevendo, então tem uma relação muito próxima mesmo entre o livro e a obra dela.
Saltam aos olhos, em Pequenas Hemorragias, as várias referências da cultura pop, mas não apenas. Há uma série de referências artísticas, como Van Gogh, Monet, Oompa-Loompas, Nirvana, Nico, pra citar as que aparecem nos primeiros contos. Elas são um recorte do teu gosto como consumidor de arte?
Algumas sim, outras não. Eu tento muito pensar em termos de personagens. Claro que a gente acaba se colocando muito em algumas personagens, mas não necessariamente. Eu, por exemplo, não sou tão ligado às artes plásticas. A minha esposa é. É graduada em artes, é artista, ilustradora. Então ela tem uma bagagem artística das artes plásticas que, por exemplo, eu não tenho muito. Apesar de gostar e até já ter dado aula improvisada de artes em escola. Mas muitas das referências musicais fazem parte da minha juventude. As referências pop, inclusive. Esse foi um esforço que eu tentei colocar dentro do livro, de também representar uma Fortaleza que não é aquela cidade que as pessoas estão acostumadas.

“Vocês vêm pra essas bandas querendo ver fantasmas, disse, por fim. Concordei: vendo fantasmas, e bati no balcão pra pedir outra dose antes que a fumaça me sufocasse”
Do conto Canção de Ari
Muitas das histórias se passam em Fortaleza, capital do Ceará, e existe, no resto do país sobretudo, uma certa visão sobre Fortaleza, que não é a cidade na qual eu cresci, a cidade em que eu vivi a minha juventude e que eu moro até hoje. Então quis também dar essas referências da minha juventude e deixar claro nas personagens. Então muitas vezes são coisas que amigos meus falavam, conhecidos meus curtiam. Eu acho que, em termos de referências artísticas, talvez o que seja mais autobiográfico esteja no conto “O último disco de Wendy O. Williams”, que tem muito da minha vivência com o punk e o grunge e o rock underground que se fazia com muitas dificuldades aqui em Fortaleza.
Você é meu conterrâneo, nasceu e mora em Fortaleza. E essa nossa cidade é presença constante nos teus contos. Considerando o ar sombrio de muitas histórias de Pequenas Hemorragias, você acha que Fortaleza é uma cidade que favorece histórias de suspense? (pra usar um termo que não é exato nesse caso)
Olha, eu acho que qualquer cidade de qualquer parte do mundo favorece histórias de suspense, de horror, histórias sombrias, como você preferir chamar. Cidades são espaços onde muita coisa acontece, muita coisa boa, mas muita coisa ruim também. Então, acho que é um ambiente sempre muito propício para narrativas cuja atmosfera seja mais asfixiante ou cuja atmosfera seja mais angustiante. Eu acho muito curioso quando as pessoas sempre pensam em espaços mais desérticos ou, às vezes, florestas, selvas, para histórias desse tipo, histórias sombrias, sendo que a cidade é algo que me assusta bastante. E as nossas cidades são todas cidades construídas sob perspectivas de violência, de afastamento, de instituição de fronteiras muito marcadas. Então nesse sentido eu acho que qualquer metrópole, qualquer megalópole brasileira, latino-americana, são ambientes muito propícios para histórias, seja histórias mais propriamente de medo ou histórias desse horror mais angustiante, mais sugestionado, que talvez seja uma classificação mais propícia para os contos de pequenas hemorragias.
Você, como pesquisador, tem uma pesquisa sobre o gótico decolonial. Eu queria saber se, na escolha da cidade de Fortaleza, há uma afirmação do decolonial, da literatura decolonial, uma afirmação das cidades latino-americanas.
Sobre a minha pesquisa e a relação dela com Pequenas Hemorragias, impossível não ter. Primeiro, eu não digo que eu escreva gótico, eu não diria que esses contos são góticos propriamente, só para já deixar essa marcação aqui, porque eu pesquiso especificamente gótico latino-americano. E no sentido de ser decolonial ou não, eu diria que essa não é uma preocupação que eu tenho enquanto eu escrevo. Eu acho que a gente precisa ter, sim, essa preocupação a respeito de decolonialidade, mas no caso específico do Pequenas Hemorragias, eu estava pensando mais em um resgate de uma certa infância, sabe? E aí vamos retornar de novo para o tema da memória, e de estudar nessas histórias quais são os limites da realidade dentro do campo da memória. O que é real e o que é fantástico quando a gente rememora uma situação, um fato? Então, acho que o livro está muito, muito, muito ligado a isso. Eu acho que é, sim, um componente, não diria de decolonialidade, mas pelo menos de afirmação de latino-americanidade, em se passar nesse ambiente de Fortaleza, mas não sei se essas histórias não poderiam se passar em outro local. Bom, não poderiam, porque minhas personagens são todas personagens cearenses, de Fortaleza. Mesmo quando a história não passa 100% em Fortaleza, os personagens são todos naturais de Fortaleza. Então, por esse lado, eu acho que não teria como elas se passarem em nenhum outro lugar, porque todas as histórias dependem muito, aliás, dependem 100% da construção desses personagens.

“Eu tinha atravessado uma fronteira e admitir poderia significar que não havia mais volta”
Do conto Rainha Naja
O Pequenas Hemorragias foi assunto de dois podcasts – Suposta Leitura e Você devia estar escrevendo [Ouça no final da entrevista]. Nos dois, discutiu-se a classificação dos teus contos – se são de horror, se são góticos, etc. Como você classifica o seu livro?
Eu podia escapar dessa pergunta dizendo que não é trabalho do autor classificar o próprio texto, que é trabalho para crítico. Mas, como eu também sou pesquisador, eu tenho uma percepção muito ampla do que é horror. Tenho uma percepção de escrita não em termos de gênero, eu não gosto de pensar a literatura em termos de gênero, mas em termos de discurso, de modo, de estética. Então, eu penso de outra forma. E eu acho que, dentro dessa perspectiva, dá para encarar o Pequenas Hemorragias como um livro que, em sua maior parte, produz um efeito de terror, ou de horror, dependendo da classificação. Tem essa distinção também, que eu não vou entrar nesse mérito, mas eu penso que ele, por ser um livro que trata muito sobre essa questão do trauma, há muito de violência também nos contos, uma violência não necessariamente explícita, muitas das questões ali estão subentendidas no texto. É um livro que causa um certo desconforto e aquela sensação que a [crítica literária] Julia Kristeva descreve tão bem, aquela sensação de abjeção, de algo lhe incomodar e ao mesmo tempo você não conseguir desviar o olhar. Então, isso tem muito a ver com a sensação essencial do horror, e é por esse motivo que eu gosto… Quando alguém me pergunta, eu classifico Pequenas Hemorragias como horror, mas é um horror que vai irritar muita gente que gosta de horror. Galera que gosta de Stephen King, que, aliás, é um autor que eu gosto muito, mas quem gosta desse horror mais clássico talvez não se agrade muito com Pequenas Hemorragias, sobretudo por ser o livro que faz muitas perguntas e oferece poucas respostas.
Eu achei uma boa definição pros teus contos: “são feridas que não deixam cicatrizes e nada contam, feridas que desaparecem e deixam a pele pronta pra sangrar de novo. Crimes perfeitos” Como é a tua relação com a escrita e a leitura de contos?
Caramba, que pergunta difícil. Quando eu imaginava sobre lançar um livro, sobre ser escritor e tal, sempre me pensei como escritor de contos. Ou como poeta ou como escritor de contos, sabe, Paulo? Eu tenho uma relação muito próxima com o conto. Primeiro porque foram os primeiros livros pelos quais eu me apaixonei, ainda que o primeiro livro que eu me lembre de ter lido tenha sido um romance do Machado de Assis e uma noveleta, pode-se dizer assim, que é A Metamorfose, do Kafka. Mas, logo em seguida, eu passei a ler muito conto e, desde então, tem sido a minha leitura favorita. Eu adoro a brevidade, a concisão do conto ao mesmo tempo que ele consegue transmitir uma força muito grande. Inclusive, é algo que você, cearense como eu, sabe que aqui no Ceará, a literatura tem uma tradição de conto maravilhosa. Inclusive, eu sempre repito o nome do Moreira Campos, porque eu quero que ele um dia viralize, porque eu acho o melhor contista de todos para mim. Com a escrita do Pequenas Hemorragias, especificamente, eu tentei fazer um exercício de estilo de não fazer aquele conto do qual fala o Cortázar, digamos assim, aquele conto que é o conto do nocaute. Eu tentei fazer um conto que se expandisse em termos de possibilidades, que a cada conto, ao final da leitura, o leitor tivesse uma impressão de ter lido algo muito maior do que era. E tentar fazer isso também sem ser chato. Uma leitura que fizesse o leitor continuar envolvido. Então, a minha escrita de contos hoje vai muito nessa linha de tentar desafiar até o que as pessoas entendem por conto. Então, colocar um monte de personagem dentro da história. Fazer uma história que dá voltas, uma história que não termina necessariamente no clímax. Uma história que talvez nem tenha clímax, que você está acompanhando um personagem durante um determinado momento da vida dele e é só isso (risos). Talvez seja fruto justamente do tanto que eu leio o conto, do tanto que eu gosto de contistas, do [Raymond] Carver, do [Roberto] Bolaño, o contista, que é quem também muito me influencia. Da Lygia Fagundes, Telles contista. Então, em geral, eu, inclusive, consumo mais os contos desses grandes autores do que os grandes romances deles. Então é uma relação que está muito próxima, a relação do Moacir leitor de contos e pesquisador também, porque a minha pesquisa também é na área de contos, com o escritor, com o autor, sobretudo de Pequenas Hemorragias
| Entrevista organizada ao som do disco The 7th Song: Enchanting Guitar Melodies Archives, Vol. 1, de Steve Vai |
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Um comentário
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kalorifer soba
Keep up the fantastic work! Kalorifer Sobas? odun, kömür, pelet gibi yak?tlarla çal??an ve ?s?tma i?levi gören bir soba türüdür. Kalorifer Sobas? içindeki yak?t?n yanmas?yla olu?an ?s?y? do?rudan çevresine yayar ve ayn? zamanda suyun ?s?nmas?n? sa?lar.
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