Uma linguagem pessoal | Entrevista com Bruno Inácio

Foto: Lucas Orsini

Olhar para o que quase ninguém olha, falar sobre quem praticamente ninguém fala, e ainda fazer isso no meio das grandes praças da cidade que é a literatura brasileira. É a isso que se propõe o escritor Bruno Inácio (@bruno.s.inacio) quando escreve resenhas sobre livros da nossa literatura para grandes veículos da imprensa literária.

Com um olhar atento e cuidadoso para os autores, autoras e editoras independentes, Bruno presta um grande serviço à parte da literatura tanta vezes e de tantas maneiras invisibilizada.

Bruno é fã de listas as mais diversas e apaixonado pela linguagem, o que fica claro nos seus dois livros sobre os quais conversamos: Desprazeres existenciais em colapso (Patuá, 2022) e Desemprego e outras heresias (Sabiá Livros, 2022). Nos dois livros, Bruno preza pela originalidade no uso da linguagem e dá às suas histórias um marcante tom de dor e desilusão.

E falamos ainda sobre o seu novo livro, que sai no segundo semestre de 2024.



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Tanto nos contos de Desprazeres existenciais em colapso quanto no romance Desemprego e outras heresias, é nítida a presença da dor e da desilusão. De onde vem a escolha por um tom desesperançoso na suas histórias?

Bom, no caso de Desprazeres existenciais em colapso, veio muito do momento político que o Brasil atravessava. Os contos foram escritos a partir da eleição do Bolsonaro e foi um momento que eu fiquei muito sem perspectivas, tanto pessoalmente quanto pensando num contexto maior, num contexto de sociedade mesmo, enquanto o Desemprego e outras heresias veio de uma experiência particular. Mas quando cheguei aqui eu fiquei muito perdido. Procurei emprego primeiro na área do jornalismo, mas não consegui. Depois eu fui para outras áreas que me interessavam, como vendedor em livrarias, em sebo, também não consegui. E aí depois eu fui para vendedor de shopping, fui procurando outras outras oportunidades e também não me aparecia um emprego. E aí o desespero foi crescendo, crescendo. Eu comecei a fazer alguns bicos, mas nada que fosse suficiente para me sustentar, realmente, com o menor conforto possível. Eu havia passado no mestrado, aqui em Uberlândia, que é a cidade que eu resido, e me mudei pra cá.

Eu sou de Ituverava, no interior de São Paulo, uma cidade bem pequena, de 40 mil habitantes, e mudei pra cá, pra cursar o mestrado, e cheguei aqui cheio de expectativas. Eu já trabalhava como jornalista em Ituverava já fazia bastante tempo, já tinha algumas experiências profissionais, e aí imaginei que, chegando aqui, eu fosse conseguir um emprego rapidamente, até porque o meu curso no mestrado não tinha bolsa. E um desses bicos que eu comecei a fazer foi como professor de redação, professor de gramática, e aí tive um aluno nessa época, que tinha uns 14 anos, mais ou menos, ele ia fazer um vestibulinho para apresentar o acesso num Instituto Federal de Ensino Médio. E ele tinha muitas dificuldades em português. Por conta disso, os pais me contrataram para essas aulas.

A partir disso, eu juntei a minha situação de desempregado e essa situação desse aluno nesse ambiente muito religioso, nesse ambiente que reprimia muito ele, e imaginei esse adulto como seria, se ele continuaria como religioso, se ele romperia com isso e com a própria família, e aí me veio a história. E eu fiquei muito impressionado, já de início, por conta da falta de maturidade dele e também por conta da origem dessa falta de maturidade. Eu percebi uma família muito religiosa. E essa casa tinha vários santos em todos os cômodos e esses santos ficavam posicionados para observar esse menino. Então ele fazia uma piada, por exemplo, e olhava imediatamente para o santos, meio que tampava a boca e olhava para o santos, já esperando uma punição ou temendo estar sendo observado. E aquilo mexeu muito comigo, fiquei muito impactado com aquela história e fiquei imaginando como seria essa criança depois que crescesse.

E considerando essa temática geral desses dois livros seus, como você avalia a relação que as pessoas têm hoje com a dor e com o sofrimento?

Ao meu redor, eu percebo muito uma tentativa de afastamento, como se as pessoas sentissem dor, sentissem tristeza e tentassem ignorar isso de alguma forma, como se fosse algo que pudesse passar despercebido, mas principalmente nesse mundo masculino. Eu sou de uma família com muitos homens e eu percebo muito isso de tentar fugir daquilo que se sente, de enxergar a tristeza como algo a ser combatido. Então muita gente ao meu redor, não apenas homens, tenta ignorar. Precisam ignorar a dor, quando, na verdade, eu enxergo com um processo super importante, não apenas para essas questões mais práticas de criatividade e autoconhecimento, mas como uma forma de você encarar o que você está vivendo, o que você está sentindo, de uma forma mais realista. Não tentar fugir do que você está vivenciando, do que você está sentindo, mas tentar entender de onde vem, quais são as camadas dessa tristeza, por que aquilo te impacta tanto, te deixa imediatamente triste. Acho isso super importante, esse processo de constante autoconhecimento.

“Encara a tela do Word há setenta e quatro minutos. Nenhuma palavra. É possível contar uma história sem ter história a contar” Do conto Desprazeres existenciais em colapso

Alguns dos contos de Desprazeres existenciais em colapso fogem ao formato tradicional e são escritos em forma de diário, lista, fragmentos. O que fez você usar esses formatos não tão comuns na ficção?

Eu me considero um escritor e um leitor apaixonado pela linguagem. Eu nunca fico impactado quando leio um livro pela história em si, mas principalmente pela forma que a história é contada. E acho incrível os escritores e as escritoras que se aventuram na linguagem, que propõem algo diferente, que transitam entre gêneros, às vezes mesmo dentro de um único livro. E aí eu sempre tento fazer isso também. Sou muito apaixonado por esse processo de pensar uma história e pensar quem é o narrador daquela história, como aquela história vai ser contada, por quais caminhos essa narrativa vai seguir e aí, dentro disso, eu tento explorar um pouco as possibilidades. Esse conto [Dia de feira] é parte de uma situação, eu acho que ele chama Dia de feira, ele é um monte de conversas, um monte de barulho, tem sirene, tem pessoas conversando, tem frases pela metade, que é uma coisa que eu passo às vezes, eu tenho muito problema com estímulos, principalmente luzes e sons, então acontece se eu ficar num lugar muito movimentado, com muitos estímulos, como um shopping por exemplo, em determinado momento me acontece isso, de eu me desligar e aí eu começo a prestar atenção em cada estímulo de forma individual, vou ouvindo aquelas conversas e elas vão se misturando, é uma coisa muito caótica. E tentei passar isso nesse conto, que é um conto super curtinho, com toda essa mistura aí de coisas acontecendo ao mesmo tempo, em uma feira, que é um ambiente bem adequado também para esse tipo de situação.

No caso do Desprazeres existenciais em colapso, tem um conto que é em formato de lista [Desprazeres existenciais em colapso ou Lista de obrigações conceituais e pós-modernas (ainda em construção)], que ele é bem diferente em questão de estrutura, porque ele parece, num primeiro momento, amontoado de coisas, mas depois ele forma uma história. Tem um conto que é um diário [M. e todo o resto], mas por algum motivo esse diário está fora de ordem, dentro das anotações, aí, se você prestar atenção nas datas, elas estão num espaço de tempo ali muito bagunçado. Você precisa montar a história na sua cabeça e entender quando aconteceu cada fato. E isso foi um quebra-cabeça que eu gostei muito de montar, fiquei muito feliz com o resultado. 

Do romance Desemprego e outras heresias

No colofão de Desprazeres existenciais em colapso, você diz que esse livro é uma “uma tentativa (a melhor até aqui) de encontrar a própria linguagem”. Como acontece, no seu caso, essa busca por uma linguagem própria, por uma voz própria?

Acho que um ponto fundamental para essa busca da linguagem na minha vida vem de uma oficina que eu fiz em 2018, uma oficina online com o Marcelino Freire, porque era aquele momento em que eu sentia essa necessidade de encontrar minha própria linguagem. Eu tinha feito uma oficina antes com um outro escritor e foi uma experiência bem ruim. Foi um escritor que cobrava coisas da gente que, na minha cabeça, não fazia muito sentido. Então ele insistia que nós, os seus alunos e suas alunas, fôssemos todos muito bons escrevendo todo tipo de texto literário. Era uma turma formada por pessoas que estavam começando a escrever, e ele enfatizava muito a importância de você se dedicar à escrita por 6, 8 horas por dia, encarar como um trabalho mesmo. E aí eu fiquei pensando quão burguês você precisa ser para dedicar 8 horas do seu dia à escrita enquanto você está planejando o seu primeiro livro, né? Você não é um escritor ou uma escritora já consagrada, você é uma pessoa que está começando a dar os primeiros passos, e aí tem essa cobrança, essa necessidade estabelecida, você precisa escrever 6 ou 8 horas por dia. Aquilo me desgastou e me afastou, de certa forma, da escrita literária por um tempo.

Até que em 2018 resolvi voltar a escrever, a tentar encontrar essa minha voz. Tive a oportunidade de fazer a oficina com Marcelino Freire, e ele foi no lado total oposto do outro escritor. Ele dizia que o escritor precisa trabalhar todos os dias, mas não necessariamente escrever todos os dias, então você não vai conseguir escrever todos os dias, principalmente para quem está começando agora, para quem precisa trabalhar de outras formas durante o dia, para quem é CLT e tudo mais. Mas você precisa, segundo Marcelino, trabalhar todos os dias na condição do escritor, então você vai reler um conto seu, vai melhorar, vai fazer uma revisão, vai fazer uma leitura.

O Marcelino também me ensinou muito sobre fortalecer as suas próprias limitações, ele mesmo falava que não conseguia escrever muito bem frases longas, ele falou “então vou escrever frases curtas, mas escrever frases curtas muito bem.” E isso foi uma revolução na minha vida, mudou muito minhas perspectivas. E a partir disso eu passei a buscar a minha própria linguagem. Às vezes faço um exercício de ter uma história na minha cabeça e tentar escrever aquela história de várias formas diferentes, com frases mais longas, com frases mais curtas, com adjetivos, sem adjetivos, com uma escrita mais poética, com uma escrita mais crua. Então cheguei à forma da minha escrita, que eu continuo, evidentemente, trabalhando todos os dias para aprimorar, mas eu já acho que ela está se desenhando, eu já acho que ela está de certa forma definida, ela já tem uma cara.

Ainda no colofão do Desprazeres existenciais em colapso, você diz que o livro é um jeito original de abordar o absurdo no cotidiano e o cotidiano no absurdo. Então, para você, o que é esse absurdo e como ele se insere no nosso dia a dia, de acordo com o seu ponto de vista?

Eu acho que no caso do Desprazeres existenciais em colapso, esse absurdo foi muito pro lado de violências cotidianas, principalmente por conta do momento político que o país atravessava. E aí eu lembro de um conto desse livro que chama Fabrício, é um dos meus contos preferidos desse livro, que é a história de um cara rico que, em determinado momento, descobre que o porteiro do prédio em que ele mora morreu, e aí ele fica num primeiro momento indignado com a comoção ao redor daquela morte. Ele descobre só nesse momento que o porteiro chamava Fabrício, e aí ele começa a pensar nesse momento. Ele até se revolta com ele mesmo, pensando, “porra, porque você tá pensando no porteiro do seu prédio, morreu, enterra e é isso.” E aí ele vai entendendo que existe uma história ali, que existe uma pessoa, mas não é uma reflexão, evidentemente, que é forte o suficiente para resultar em uma mudança de comportamento. E eu acho esse tipo de situação muito absurda.

Eu fico muito incomodado, eu fico muito indignado com essas pessoas que não enxergam o próximo, que estabelecem essa relação de superioridade, vamos dizer assim. E passam a exercer essas violências cotidianas, então acho que o livro tá muito próximo disso, desse absurdo no cotidiano, que pra mim é extremamente violento.

Do conto Eutanásia

Falando em dia a dia, quase que semanalmente, você escreve resenhas de livros da nossa literatura para alguns jornais e revistas, como Le Monde Diplomatique, Jornal Rascunho, São Paulo Review. Qual a importância da resenha para o leitor brasileiro?

Para o leitor eu acho que é importante por fomentar o hábito de leitura e para atrair o olhar para o que está sendo produzido no Brasil em literatura. E acho que tem uma importância grande para os escritores e para as escritoras também. Especialmente porque eu tento ter um olhar um pouco mais sensível em relação ao que está sendo produzido, principalmente pelas editoras independentes brasileiras.

O Marcelo Nocelli, editor da Reformatório, recentemente falou nas redes sociais dele que é muito triste você ver que a maioria das livrarias tem a mesma vitrine. Estão lá os livros que são os mais vendidos, que são os mais procurados, e esses livros, os leitores já sabem que estão nessas livrarias. Isso não significa, evidentemente, uma espécie de boicote da minha parte a grandes editoras, nem nada disso, porque eu também escrevo [resenhas de] livros publicados por grandes editoras, também compro livros dessas editoras, recebo livros dessas editoras, mas eu acho muito importante esse olhar para o que está sendo produzido pelas editoras independentes. De início, quando eu comecei a escrever resenhas de livros publicados em editoras menores, houve uma surpresa muito grande. Não só por eu me propor a escrever as resenhas, mas pelos veículos também aceitarem as resenhas de editoras menores, porque também existe isso de veículos que publicam sempre resenhas sobre as mesmas editoras, dos mesmos autores, das mesmas autoras.

Em relação às resenhas, em relação à crítica literária, eu observo um movimento parecido. Parece que está todo mundo escrevendo ou querendo escrever sobre os mesmos livros. Temos aí livros considerados sucesso, que são livros já bem aguardados de editoras específicas, que quando eles saem, eles ganham sete ou oito resenhas em grandes veículos, ao passo que tem muitos livros bons aí que nunca ganharam uma resenha, mesmo que seja assim num perfil de Instagram que tenha 100 seguidores, nem nesse tipo de situação isso chegou a acontecer. E é algo que me incomoda bastante porque a literatura brasileira contemporânea. Produzindo coisas incríveis, coisas de muita qualidade, de muitos experimentos com linguagem, e esses livros precisam chegar a mais pessoas, eles precisam ter mais visibilidade.

Outra presença marcante nos dois livros – Desprazeres existenciais em colapso e Desemprego e outras heresias – é a da música, que traz para as histórias, por exemplo, Caetano Veloso e Barão Vermelho. Como a música influencia na sua produção literária?

Acho que, durante a maior parte da minha vida, a música foi a minha expressão artística preferida. Isso mudou de uns tempos para cá, e a literatura foi ganhando espaço cada vez maior, e hoje é a minha expressão artística preferida, mas a música não desapareceu. Eu passava boa parte do meu tempo na pré-adolescência ouvindo música. E não digo que eu ouvia música enquanto eu fazia outras coisas, eu sempre tirava ali uma horinha, duas horinhas por dia para colocar os artistas que eu gostava e ficar ali simplesmente ouvindo música, não lia enquanto fazia isso, não conversava, era o meu momento de simplesmente ouvir. E foi a partir daí que eu comecei a ter uns interesses em alguns artistas específicos, ainda que eu não entendesse a complexidade na época.

E Cazuza me levou para outros cantos, aí eu fui conhecer melhor o trabalho do Caetano Veloso e Gilberto Gil, da Rita Lee, fui me aprofundando nessa mistura de MPB e rock. Isso foi se tornando uma referência muito importante para mim e passou de forma muito natural a aparecer nos meus escritos. No Desemprego e outras heresias, o personagem narrador era bastante fã do Cazuza, bastante fã do Barão Vermelho, na época que o Cazuza era vocalista. Elle também teve a vida transformada pelo maior abandonado, e é uma referência que foi muito importante pra mim, pra poder colocar nesse livro. E em outros trabalhos também, acho que a música é essencial pra minha criação.

Pouco depois disso veio o lançamento do filme do Cazuza, e aí eu comprei um CD pirata com a trilha sonora do filme, fui assistir o filme no cinema, não pude entrar porque na época eu tinha 11 ou 12 anos e a censura era 16. Mas ouvia sem parar o CD muito encantado com aquela forma que ele usava a linguagem. O Cazuza é o maior exemplo disso, o meu primeiro contato com a música dele foi quando eu tinha uns 10 anos. Um colega da minha sala levou o porta-CDs do pai dele para a sala de aula e aí ele foi mostrando os CDs e eu vi um ali, um dos poucos CDs originais que tinham, o resto era tudo pirata, escrito o nome do artista em caneta mesmo, e aí eu vi um CD original, ali no meio me chamou atenção, um CD todo preto, escrito Barão Vermelho – Maior Abandonado em vermelho. Ele me emprestou, levei para casa, mostrei para minha mãe e falei “olha, trouxe esse CD aqui que meu colega me emprestou, Barão Vermelho.” Mminha mãe é muito fã de Roberto Carlos, mas nunca foi muito ligada em música. Aí ela disse, “ah, eu acho que Barão Vermelho é a banda que o Cazuza era o vocalista, mas não sei. Acho que sim.” E aí eu fui ouvir aquele CD e fiquei muito impactado. Muito impactado com aquelas letras que na época não entendia, mas já gostava.

Inclusive, eu queria que você falasse um pouco sobre o novo livro que está para ser lançado, o De repente nenhum som, cujo título, pelo que você divulgou, nasceu de uma poesia do Cazuza. 

O De repente nenhum som é meu novo livro, vai ser publicado no segundo semestre [de 2024] pela Sabiá Livros, com recursos da Secretaria Municipal de Cultura daqui de Uberlândia. Ele foi contemplado por um edital no ano passado e deve sair agora, nos próximos meses, com a participação de muita gente que eu admiro há anos, em processos como preparação de texto, leitura crítica, prefácio, posfácio, texto de orelha, então eu estou bem entusiasmado com esse livro. Ele reúne 12 contos, é um livro bem curtinho, e o ponto de partida dele é uma experiência real. A minha avó, pouco antes de morrer, levou um tombo sozinha em casa e não conseguiu se levantar. Isso foi uma coisa que me marcou muito.

Eu fiquei pensando por bastante tempo sobre essa situação, sobre esse fim da vida, sobre esse momento em que a gente cai, o corpo para de responder e você não tem mais forças para se levantar. Eu pensei muito sobre isso, sobre essa situação, até que escrevi um conto em 2020 que chama Céu de Ninguém, em que tem uma idosa que cai, não consegue se levantar e aí eu tento relatar os pensamentos dela nesse momento de angústia, nesse momento de revolta, de fraqueza. Eu tentei imaginar o que uma pessoa sente quando o corpo já para de responder.

Uma primeira versão desse conto foi publicada na revista Subtextos, depois eu mexi em algumas coisas, até que em 2022, se eu não me engano, eu fiz uma oficina de criação literária com o escritor Carlos Eduardo Pereira. Ele passou alguns exercícios, e em dois desses exercícios surgiram outros contos que estão nesse livro também. Um desses contos é um personagem que vai para a sessão de terapia, chegando lá, ele, meio neurótico, fica incomodado com a analista pelo fato de ela ter mudado o divã, não é aquele que ele estava acostumado a usar, e aí ele resolve ficar em silêncio como protesto diante daquela situação, até que depois de um tempo ele consegue falar sobre o que ele gostaria, que no caso é um processo de luto diante da morte de um familiar.

E o segundo conto, também parte de uma experiência pessoal, é sobre uma criança, um adolescente, na verdade muito tímido, que tenta vender pamonha. Foi uma coisa que me aconteceu. Na época meu pai estava desempregado e eu tinha que ajudá-lo a vender para a pamonha, mas eu era ainda mais tímido do que sou. Hoje ainda sou um pouco, mas não se compara com o que eu era quando tinha 15 anos. E aí aquilo foi muito desafiador para mim, porque eu sabia da importância que tinha o meu empenho, eu sabia que aquelas pamonhas precisavam ser vendidas para a gente ter nosso dinheiro ali para pagar as contas, para ter comida na mesa. E aí eu escrevi um conto com essa situação: um pai que está vendo o esforço do filho, um pai que é um ótimo vendedor e um filho que tenta se esforçar o máximo para conseguir atingir aquele objetivo, conseguir vender aquelas pamonhas.

Em determinado momento, com esses três contos prontos, eu percebi que eles tinham uma coisa em comum. Eles falavam sobre, aliás, duas coisas em comum. Eles falavam sobre relações familiares e eles abordavam o silêncio. E aí, com esses dois temas, eu me propus a escrever outros contos conectando, de certa forma, todos em uma mesma família, né? Todos os personagens desse livro novo vivem histórias que não se relacionam diretamente, mas eles pertencem a uma mesma família, que é essa família atravessada em muitos sentidos pelo silêncio, desde o silêncio confortável até. O silêncio mais desagradável possível.

Um dos aspectos curiosos que mais se destacam na leitura dos teus dois livros é a construção de listas, as mais diversas. De onde vem esse gosto e essa preferência por escrever listas?

Isso é algo que eu faço muito no meu dia a dia. Eu gosto muito de fazer listas de cinco coisas preferidas. Eu tenho aqui meus cinco livros preferidos, meus cinco filmes preferidos, até coisas mais absurdas assim, meus cinco salgadinhos preferidos, minhas cinco frutas preferidas. E é uma coisa que eu tenho desde criança. Eu lembro de fazer as primeiras listas, de fazer anotações de filmes que eu mais gostei, que eu tinha assistido naquele ano. E aí isso acabou indo para a literatura, eu acho lista uma coisa muito, muito interessante, porque ela é muito livre. Você pode fazer listas sobre o que você quiser, com quantos itens você quiser, não precisa ser necessariamente cinco ou dez, e é uma forma de organização, mas também é uma forma de mudança, porque você se depara com a sua sua lista de dez livros preferidos que você fez há cinco anos atrás, ela provavelmente passou por transformações, e às vezes transformações drásticas. Às vezes você olha e pensa, “caramba, como eu gostava disso na época?” Acho que é um inventário de mudanças, um inventário de transformações.

E pra finalizar, e pra não deixar faltar uma lista, quais títulos entrariam na lista dos melhores livros que você já leu (versão atualizada)?

Essa é a lista mais difícil de fazer, mas eu fico com 

Vermelha Amargo, do Bartolomeu Campos de Queirós, 

Água Viva, da Clarice Lispector, 

Morangos Mofados, do Caio Fernando Abreu, 

Redoma de Vidro, da Sylvia Plath 

e a Invenção de Morel, do Adolfo Bioy Casares.

| Entrevista organizada ao som do disco A Tábua de Esmeralda, de Jorge Ben Jor |


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