Reencontrar a criança | Entrevista com Cristhiano Aguiar

Foto: Renato Parada

Eu tive a chance e a honra de ser seu aluno no que foi a primeira vez que ele ministrou aulas de escrita criativa, na primeira turma do Ateliê de Criação Literária organizado pelo escritor Olyveira Daemon, na Biblioteca de São Paulo. Professor experiente de literatura e ficcionista celebrado, Cristhiano Aguiar (@cristhianoaguiar) nos traz excelentes considerações e reflexões quando o assunto é literatura, especialmente literatura fantástica, sua área de maior atuação como escritor. É o que fica claro nesta conversa que tive com ele.

Seu livro de contos Gótico Nordestino (Alfaguara, 2022) constrói e explora um Nordeste sobrenatural, com personagens repletos de maldições, individuais ou familiares, e que enxergam além do que se vê.

Além de falarmos sobre seu aclamado livro, conversamos também sobre infância, gótico brasileiro, classificações e hierarquizações literárias e seu novo livro. Vale muito ler até o final.



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As crianças são uma presença constante nos contos de Gótico Nordestino. Elas são importantes, por exemplo, nos dois primeiros contos – “Andaluz” e “As onças” – e destaco o grupo de meninos do conto “A noiva”. Como você enxerga a relação entre fantasia e o período da infância?

Cara, então veja, às vezes as pessoas me perguntam qual é o principal tema do Gótico Nordestino. E esse tema, às vezes as pessoas pensam, ah, é o medo, é a ansiedade, é o terror. É um livro, como tu sabe, que tem uma dimensão do monstruoso, tem um comentário político, etc. E tudo isso faz parte do livro mesmo. Só que isso é mais ou menos consciente desde o início, sabe, Paulo? O grande tema do meu livro é a família. Eu acho que praticamente dos nove, oito contos são muito sobre fantasmas e fantasmagorias familiares ligadas a traumas de família, ligadas a subentendidos, a falhas de comunicação e ligadas à memória desses traumas que nascem no seio da família. Esses contos que você citou, por exemplo, eles são claramente vinculados a isso, desde essa relação complexa que o protagonista, que a criança Andaluz tem em relação ao desejo que a mãe porventura pode sentir por um outro homem que não seja o pai dele, ou então, no caso do conto “A noiva”, essa relação que esses meninos têm com as imagens arquetípicas do feminino. Então, tudo isso está ligado à questão da família de alguma maneira. 

A questão, por exemplo, no caso desses personagens que eu citei agora, das relações, das projeções desses personagens com as suas figuras maternas. Então, o menino e a criança aparecem no livro em função do fato de que eles são um tema que é um elo fundamental. Do debate sobre família que o Gótico Nordestino faz, eu tenho duas citações, a tua pergunta me remeteu a duas citações que eu queria compartilhar contigo. Uma é uma citação que está no Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, em que ele retoma um poema do [William] Wordsworth.

A partir desse poema, Brás Cubas vai dizer que o menino é pai do homem. Essa é uma frase que sempre esteve na minha cabeça e recentemente eu vi um depoimento da Camila Sosa Villada, escritora argentina, sobre a Marguerite Duras. Ela vai dizer que toda literatura nasce da infância. Isso pra mim está muito forte, inclusive em meses recentes tem sido um motivo de investigação e inquietação pessoal. Porque eu estou dizendo isso? Porque dialogar com a infância é dialogar com as matrizes e as raízes da minha origem como escritor. Eu me defino como escritor entre 9 e 10 anos de idade e essa definição não me abandona até o momento presente em que eu tenho 43 anos. 

Então, de alguma maneira, falar da criança nos meus contos é falar da minha conexão primeira e primordial com a literatura. E quando eu escrevi o Gótico Nordestino, eu estava procurando essa conexão com essa criança, com esse menino que tinha um sonho de ser escritor e de alguma maneira esses contos e tudo que eu tenho escrito, principalmente depois do Gótico Nordestino, é uma forma de prestar contas a essa criança literária com a qual eu preciso dialogar.

Quanto da sua infância você aproveitou para escrever os contos de Gótico Nordestino?

Paulo, essa tua pergunta é muito interessante e ela desdobra a pergunta anterior. Você pergunta o quanto da minha infância está no gótico nordestino. Eu vou te dar duas formas de resposta. A primeira resposta é que a minha infância está integralmente, porque a minha literatura é essa minha infância. E eu estou respondendo isso na lógica da resposta à tua pergunta anterior. Portanto, a minha literatura é a expressão do desejo e do impacto, do encontro que eu, criança, tenho com a palavra, com a poesia, com a narrativa. E quando eu sou criança, muito claramente, a literatura que mais me fascina, desde sempre, é a literatura que tem uma dimensão imaginativa muito acentuada. 

E quando eu te falei na resposta anterior que eu precisei acertar contas com essa criança literária, é porque eu também precisava acertar contas com a demanda de imaginação que a minha ficção começou a pedir cada vez mais para mim. E é por isso também que o reencontro com essa criança é o reencontro com o meu compromisso com as poéticas do fantástico, da literatura fantástica. Não significa que eu não possa voltar a escrever contos mais realistas, eu até tive uma ideia de um projeto ontem, um pouco ligado mais a alguma coisa que não teria nada de insólito, de sobrenatural. Mas, de fato, está muito claro que reencontrar a criança, reencontrar o Cristhiano escritor na infância é consolidar, quer dizer, o caminho preponderantemente da literatura fantástica do insólito. 

Mas é claro que tua pergunta tem outra dimensão. Você quer também saber se existem vivências concretas, né? Não é só essa dimensão estruturante que você está buscando. Ah, tem dimensões concretas da minha infância nesses contos? Sim, não há dúvida nenhuma. Todas as crianças que estão ali no Gótico Nordestino são um pouco aspectos concretos da criança que eu fui. Eu fui uma criança, por exemplo, muito marcada talvez por uma dimensão de insegurança. O que eu lembro da minha infância é eu ter medo de muitas coisas. Talvez porque essa insegurança tenha vindo de um lar com uma acentuada camada de proteção que me envolvia de alguma maneira. E muitas vezes uma acentuada proteção causa como consequência involuntária uma acentuada insegurança de que “será que eu consigo caminhar por mim mesmo?” Então há uma coisa do medo, da fragilidade nessas crianças, e eu lembro, eu tive muitos amigos e tal, amiguinhos, mas ao mesmo tempo eu lembro, eu tenho muitas memórias minhas de criança, de vivenciar a solidão, e as minhas crianças são solitárias. E eu acho que eu tô tendo consciência até disso agora, viu? 

Eu nunca tinha falado sobre isso, sobre essa questão da solidão na infância. Seja em relação a mim, ou seja em relação às minhas personagens. Então, eu acho que tem um caminhar pela solitude, que tá ali também, nas minhas personagens infantis, e que é um pouco reflexo do que eu vivia. Uma das minhas brincadeiras favoritas, por exemplo, era pegar jogos de tabuleiro e jogar sozinho. Jogo da vida, banco imobiliário, Scotland Yard. O que eu fazia, Paulo? Eu misturava as peças e criava joguinhos que eu próprio jogava pra mim mesmo. Esse brincar solitário está ligado também a brincar comigo mesmo num plano que não é só o plano das relações sociais concretas, mas também no plano da fabulação, do imaginar. Então, tem traços da personalidade dessas crianças, são traços da personalidade da criança que eu fui. Tem um conto específico, que é o conto “A Noiva”, que também traz memórias da infância do meu pai. Então, ali, quando eu estava escrevendo esse conto, eu lembro de, com um caderninho, aí peguei uma garrafa de vinho, botei em cima da mesa, e na época meus pais estavam morando em Brasília, eu tinha ido visitar eles, e aí eu falei, ó pai, vamos tomar um vinhozinho aqui, me conta aí coisas da sua infância, e fiquei perguntando uma ou outra coisa. 

Então, especificamente, para além de terem vivências emotivas da infância, que compõem a personalidade dos meus personagens crianças, tem uma criança específica que é o protagonista do conto “A Noiva”, que é muito calcado nas memórias de infância do meu pai ali: Campina Grande, anos 70, a mãe do personagem que aparece no conto é muito inspirada na minha avó, dona Ildes, já falecida, já há alguns anos. Alguns cenários como o Colégio Estadual da Prata, que é uma escola pública que que foi muito tradicional em Campina Grande, que marcou muito a geração dos meus pais, foi onde meu pai estudou, enfim, essas coisas. Então, para esse conto específico tem também essa memória muito concreta, algumas memórias, vivências e memórias muito concretas do meu pai.

No nosso imaginário, é comum a associação entre o fantástico e o lugar afastado, abandonado, inóspito. Muitos dos contos de Gótico Nordestino, porém, se passam em Campina Grande, na Paraíba, que é uma cidade grande. A que você atribui essa associação e por que você optou por fugir dela na maior parte do livro?

Paulo, realmente, Campina Grande é uma cidade que se encontra no interior da Paraíba. Ela é um dos cenários do Gótico Nordestino, ela vai ser um cenário parcial do meu próximo livro, que é um romance. E, de fato, ela não é exatamente aquela imagem típica da cidade do interior, que você às vezes vê numa novela, num seriado de televisão da Rede Globo. Ela é uma cidade de médio porte, ela é um polo tecnológico universitário e econômico regional, e sempre foi assim. Então, tem um veio de debate que eu tentei trazer para o meu livro, e isso também é mais ou menos inconsciente, quando eu digo inconsciente é porque eu vou escrevendo e pensando essa questão, mas também não é um projeto. 

Essa é a pauta que eu coloquei no livro, que é esse debate sobre a construção da imagem do Nordeste. E sempre que eu sentia que eu poderia dar uma alfinetada em relação a estereótipos sobre como o Brasil e nós próprios nordestinos, você como nordestino também, enxergamos o Brasil, se isso, essa piscadela, essa alfinetada nesses estereótipos, eles se encaixavam organicamente na história que eu estava contando, naquele conto, aí eu colocava, porque eu achava que era um debate importante. 

Até porque também, academicamente, quando eu comecei a fazer pesquisa, quando eu abandonei o curso de Direito e fui fazer Letras, eu comecei a fazer pesquisa na graduação, na Iniciação Científica, orientado pela minha saudosa ex-orientadora, a professora Sônia Ramalho. E eu me iniciei nos estudos acadêmicos, de pesquisa acadêmica na literatura, pensando e problematizando o discurso regionalista. Então, esse foi um tema que desde meus vinte e poucos anos é importante para mim. Mas, claro, o Gótico Nordestino não é uma aplicação desses problemas, não é uma aplicação desse debate teórico. Mas ele faz parte da minha trajetória, ele é uma das questões sobre as quais eu penso e sobre as quais eu escrevo e dou aula. 

O que eu conseguia, de alguma maneira, usar para desmontar essas imagens estereotipadas do Nordeste que não são criadas só pelo Sudeste ou pelo Sul do país, elas são criadas muitas vezes por nós mesmos nordestinos. No conto “Mulher dos Pés Molhados”, eu sei que se passa em uma espécie de praia turística, de balneário nordestino, na Paraíba. Eu tentei criar a praia mais mal-assombrada, mais amaldiçoada, mais maldita possível, para brincar com essa ideia, o Nordeste como esse lugar da praia, o Nordeste como esse lugar que eu paro de fazer as coisas sérias aqui no Sul e no Sudeste e vou para o Nordeste me pendurar em uma rede e tomar água de coco. Ou, por exemplo, no conto “Firestarter”, em que eu boto uma tecnologia avançada de internet na região da Zona Canavieira, perto da cidade de Itabaiana, na Paraíba também. Então tem essa dimensão. É por isso que eu, ao longo desses contos e agora também no meu novo romance, eu estou, periodicamente, debatendo e corroendo essa imagem que o Nordeste tem, que é uma imagem que debate o Brasil. 

Esse gosto do fantástico pelos lugares distantes, ele tem uma tradição histórica. Essa tradição histórica nasce com a literatura gótica, no final do século XVIII e ao longo do século XIX, que é uma estética que nasce no contexto dos debates, das preocupações do romantismo. Então o Romantismo tem um gosto pela memória das ruínas. Porque, de alguma maneira, a memória das ruínas traz para o romântico uma série de sensações e de debates ideológicos que são interessantes para ele. Em termos de sensações, para um romântico é muito interessante o sentimento da nostalgia e da melancolia. 

E os lugares distantes, os lugares abandonados, eles são propícios à construção desses sentimentos. E para um debate ideológico, determinados romantismos, por exemplo, romantismo alemão ou romantismo em língua inglesa, escolheram outras regiões da Europa para exotizar. E muitas vezes a literatura gótica, ela acontece em lugares distantes, por exemplo, da Alemanha ou em lugares distantes da Inglaterra, como uma maneira também de, olhando para o distante, olhando para o outro que se torna exótico, afirmar a sua própria nacionalidade, porque esse é um debate importante. O debate romântico, a literatura romântica, nasce a partir de um debate identitário da formação da identidade nacional de vários desses países, e a literatura faz parte desse debate, o Brasil também, é uma das principais funções do romantismo brasileiro. 

Então o distante, o arruinado, aquilo que me confere uma historicidade, não tem só a ver com essa construção das melancolias, tem a ver também com a construção de um discurso político que formula identidades nacionais e que formula identidades regionais. 

E a literatura fantástica é uma protagonista desse debate. Ela muitas vezes é vista como algo que está na margem desse debate, alheia a esse debate, ou de forma excêntrica, mas na verdade ela institui um protagonismo em relação a isso. Muitas vezes reforçando esses estereótipos do exotismo do outro. Então, por vários motivos eu voltei a me descobrir esteticamente na minha vida pessoal como um romântico. Eu diria que hoje eu sou um romântico, um neo romântico no século XXI. Voltei nos últimos anos a dialogar muito com o Romantismo. E em especial com as vertentes do horror, do gótico, do insólito no Romantismo. E isso pra mim tá muito agudo também, sabe, Paulo?

Numa nota do livro A outra volta do parafuso, de Henry James (Edição Penguin-Companhia das Letras) – romance que aparece no conto “Tecidos no jardim”, meu preferido do livro, inclusive – nessa nota, o tradutor, professor e poeta Paulo Henriques Britto usa a expressão “romances góticos” entre aspas. Sei que o uso dessas aspas pode ter vários significados, mas por que a narrativa gótica não vingou tão bem no Brasil?

Massa, Paulo. Inclusive, eu fiquei muito feliz de saber que esse conto é um dos seus favoritos, porque ele é o conto menos comentado do Gótico Nordestino. Ele é um dos contos mais antigos, ele é o segundo, ou até o primeiro a ser escrito, eu não lembro agora se é ele ou o “Firestarter”. E eu gosto que só desse conto, mas como ele é muito curto, ele é muito mais um conjunto de sensações do narrador. Aí eu acho que ele fica um pouco ali ofuscado em relação aos outros, ele não tem exatamente um enredo, mas é um conto, inclusive eu acho que esse conto faz uma transição entre o meu livro anterior, que saiu pela [Editora] Lote 42, Na outra margem, o Leviatã, ele poderia ser um conto que estaria no livro de 2018, para uma dimensão mais narrativa, mais abraçando o horror e o fantástico que está no Gótico Nordestino

Então, eu teria que ver qual o contexto que o Paulo Henriques Britto está debatendo essa expressão romances góticos e qual o contexto dessas aspas. É que existe um debate interessante sobre se o gótico é um gênero literário ou se ele é uma estética, um modo narrativo. O que eu entendo, e isso está debatido aí academicamente também, é que você tem o gótico nascendo como um gênero específico do romance, ele é um tipo de romance com características específicas, com tipos de personagens específicos, com situações que se repetem, com um conjunto de temas que se repete. E provavelmente o primeiro romance gótico como gênero literário é o Castelo de otranto, do Horace Walpole. E depois disso, o romance gótico como gênero, ele entra em decadência e ele se dilui num conjunto de atmosferas, de imagens e de temáticas, que de alguma maneira, não configuram um gênero fechado, mas configuram o que eu vou chamar de uma poética. Uma das formas de poética negativa, como falam o Júlio França e o Oscar Nestarez. 

Eu queria relativizar um pouco a tua avaliação no caso da literatura brasileira. A gente tem um romance como a Úrsula, da Maria Firmina dos Reis, por exemplo, se ele não é exatamente um romance gótico, ele tem, e isso está sendo muito debatido em estudos acadêmicos mais recentes, ele tem sim uma profunda influência do romance gótico. Você vai encontrar ecos disso em obras românticas do romantismo. do século XIX já esquecidas, você vai encontrar ecos do romance gótico em algumas coisas que o José de Alencar escreve, mas você vai encontrar contos muito influenciados pela literatura gótica e que se expressam como obras de horror na literatura brasileira, também no século XIX. E aí eu queria destacar para você a antologia Tênebra: contos de horror do século XIX, publicada pela Editora Fósforo e organizada pelos já citados Oscar Nestarez e Júlio França. E essa antologia, para mim, é um divisor de águas, porque ela prova o quanto, na verdade, o gótico, pelo menos como estética, faz parte, sim, do desenvolvimento da literatura brasileira a partir do século XIX. 

E o gótico, ele continua, tá? Ele continua como matéria inspiradora dentro do modernismo. Eu estou muito convencido, por exemplo, eu estou me preparando para escrever um pouco sobre isso, do quanto isso está na obra de um escritor paraibano como José Lins do Rego, ou do quanto imagens fantasmagóricas vão aparecendo na poesia modernista de uma Cecília Meirelles, de um Drummond e de um Manuel Bandeira. Eu não estou inventando a roda, outros críticos apontam isso, mas talvez de uma forma mais sistemática, conectando isso com tradições específicas do horror e do gótico. Vale ainda um aprofundamento em relação a isso, uma pesquisa em relação a isso. Então, eu vejo isso dessa maneira. 

Vou te dar só um exemplo. Tem um conto que é “Demônios”, do Aloysio Azevedo, que é muito a instalação de uma espécie de ficção científica gótica na literatura brasileira. Então, para além do Álvaro Azevedo, para além do Macário, para além de alguns dos poemas do Álvaro de Azevedo, a gente vai ter essa difusão da influência do gótico entre nós. Na poesia também, é só lembrar de um poema do Machado e Assis, mais da carreira mais inicial do Machado, que é o “Palio da Alzira”, por exemplo. Então a gente tem aí sim um campo muito fértil. E para encerrar, é só lembrar da poesia de Augusto dos Anjos, que não pode ser compreendida sem pensar que é uma poesia que dialoga com o horror e com o gótico claramente.

O que o Nordeste tem que fez você criar um gótico nordestino, mesmo que, comparativamente a outras estéticas, como a realista, não haja ainda um gótico brasileiro amplamente reconhecido?

Eu veria esses pressupostos que você colocou em um outro viés. Eu queria propor para você, para a gente pensar juntos. Antes de chegar no Nordeste de novo, como é que eu vejo de outra forma? Eu tenho a impressão de que, nas últimas duas décadas, para além de uma consolidação dos estudos acadêmicos sobre esse tema. A questão de uma cultura gótica na cultura brasileira, na literatura, nas artes, etc, até na própria arquitetura, você vai ter cartografado o neogótico gringo vindo pra cá, em edificações nossas, por exemplo. 

Mas assim, eu acho que pra além dessa coisa mais acadêmica, eu acho que há nos últimos 20 anos um reconhecimento do público, sabe, Paulo? Eu acho que o público enxerga isso agora e quer consumir narrativas brasileiras, eu estou usando a palavra narrativas para extrapolar para além da literatura, que estejam nesse campo poético, do gótico, das estéticas negativas, do horror, da literatura fantástica com ecos mais sombrios. Então é nesse sentido que eu vejo que eu não sei até que ponto ainda não se enxerga isso. Eu acho que se enxerga para além da universidade. Eu acho que inclusive se enxergou primeiro fora da universidade, através de leitores e de criadores que estavam criando sua arte. E a universidade chega a reboque para alcançar isso, depois que há um debate mais amplo, seja em fandoms, seja na internet ou seja em publicações que foram saindo, que não são acadêmicas, ao longo do tempo. Posso estar errado, mas eu veria assim. 

Eu tenho falado isso em muitas entrevistas. Talvez eu até tenha falado isso quando a gente estava trabalhando na minha oficina e nas minhas aulas [no Ateliê de Criação Literária, organizado pelo escritor Olyveira Daemon], que é um boom mesmo da literatura fantástica brasileira. Não há dúvida, é um boom de produção, de circulação, de editoras. E algumas dessas coisas até chegam no que a gente poderia chamar de mainstream literário. Então, antes de eu publicar o Gótico Nordestino, em 2022, existe uma série de escritores e escritoras que já estavam fazendo algo que dialoga com a proposta do meu livro. Então, eu também não queria posicionar meu livro como aquele que, de alguma maneira, é o divisor de águas disso. Ele não é. Ele é fruto de um diálogo com obras literárias publicadas no contexto independente, nas cenas específicas do horror, por editoras independentes e por autores independentes. E o meu livro é, em parte, um resultado, uma consequência deste diálogo. Ele pode soar mais de novidade porque, por ele sair por uma editora grande como a Companhia das Letras, ele acaba tendo automaticamente uma projeção midiática maior. Mas não necessariamente ele é o inventor disso, eu queria deixar isso muito claro. Pelo contrário, há toda uma geração de autores da minha idade, um pouco mais velhos, um pouco mais jovens, que estão aí conduzindo um debate que se articula com o meu livro. Por outro lado, claro que também eu acho que depois que o meu livro sai, ele também acaba sendo visto como referências para outros criadores, assim como livros anteriores ao Gótico Nordestino foram referência para mim. Isso me deixa muito feliz. Volta e meia eu vejo ecos do meu livro em outros trabalhos e eu vejo autores e autoras dizendo “Caramba, Cristiano, seu livro me ajudou a consolidar um caminho que eu achava que nem era possível para mim.” E isso me deixa muito orgulhoso, por exemplo. 

E em relação ao Nordeste, por que trazer isso? O que o Nordeste tem? O Nordeste é velho. O Nordeste é antigo. O Nordeste é um dos pontos iniciais de um processo de colonização europeia do nosso território. E isso faz com que o Nordeste tenha muitas histórias. O Nordeste tem muitas ruínas. O Nordeste tem muitos traumas. E a elaboração desses traumas sociais, através de imagens poéticas, é um dos objetivos da literatura fantástica e um das pontas de lança do gótico. Você é cearense, né? Então, veja, qual é a cidade do Nordeste que não tem história de mal-assombro, né? História de trancoso, como a gente fala. Qual é a cidade do Nordeste que não tem pelo menos uma casa, um prédio, um lugar mal assombrado? Então isso é intrínseco para a gente. E está intrínseco na cultura brasileira, essa coisa da assombração. E está intrínseco, em especial, na cultura nordestina. Um livro que me abriu muito a cabeça para isso, que ele é uma grande referência para o gótico nordestino, é um livro do Gilberto Freire, chamado Assombrações do Recife Velho. Esse livro eu li muitos anos atrás e abriu muito a minha cabeça. É um livro delicioso, eu indico demais para os teus leitores e para as tuas leitoras. E a partir desse livro eu falei, cara, foi esse livro que começou a me dar um clique de que esse era um caminho legal.

Como você enxerga o fato de a literatura fantástica ser tida como literatura de gênero?

Paulo, essa questão é uma questão que passa muito pela minha cabeça, assim, ela toca diretamente o meu trabalho. Cara, toda literatura, ela é ao mesmo tempo literatura, sem necessidade de adjetivação, e ao mesmo tempo toda literatura é, entre aspas, “literatura de gênero”. A grande questão, o grande debate, como você me coloca muito bem, é entender quais são os critérios que levam determinada obra, determinado período histórico literário, determinado conjunto de autores e autoras a serem adjetivados ou não pela ideia de gênero. E o que eu quero dizer com isso? Eu quero dizer que toda literatura é literatura. 

Toda literatura, seja pautada pelo sobrenatural, seja pautada por um olhar que enfatiza as relações afetivas cotidianas, por exemplo, passando pela autoficção, passando por gêneros mais ou menos biográficos e por aí vai, toda literatura é literatura indistintamente. Elas são expressões da sensibilidade humana que buscam usar a palavra com finalidades estéticas. A linguagem verbal com finalidades estéticas. 

Por que a gente às vezes usa essa expressão gênero na literatura de gênero? Porque muitas vezes essa expressão é usada para identificar temas e procedimentos narrativos recorrentes. Então, por exemplo, uma literatura de horror trabalha muito com a busca de produzir efeito. Produzir efeito de repulsa, de ansiedade, de medo em quem está consumindo essa narrativa. E a gente se pergunta, caramba, mas será que a literatura realista em todas as suas vertentes também não é de gênero, de certa maneira? Porque a literatura realista também tem temáticas, objetivos e procedimentos literários, narrativos recorrentes. 

Vou dar um exemplo para você. Se você pega o grande romance experimental realista modernista que é visto, e com razão, como um dos grandes momentos da história do romance – eu estou pensando aqui em romances escritos por Clarice Lispector, por Marcel Proust, por Virginia Woolf, Guimarães Rosa – esses romances são romances que inclusive são referência até hoje para leitores e para escritores e escritoras contemporâneas. Ora, quando você vai ver Virginia Woolf e Clarice Lispector, você vai ver que os romances delas tem um traço recorrente, que é a rarefação do enredo. Por quê? Porque é menos importante para esses romances contar peripécias que estão acontecendo e mais fazer uma profunda investigação poética das dimensões íntimas do sujeito, dos seus e das suas personagens. Ora, isso não é, de certa maneira, um traço que levaria a um gênero, de alguma maneira? 

Então a gente percebe que a literatura realista também é uma literatura de gênero. Mas por quê? Porque ela tem um conjunto de características que são recorrentes. E o escritor vai usar essas características e vai colocá-las criativamente a partir do seu estilo. Uma característica fundamental de uma literatura realista, seja uma literatura mais ligada à crônica social, ou uma literatura mais da subjetividade, experimental, é que, se elas são realistas, elas não trabalham com o sobrenatural. Elas não aceitam o sobrenatural dentro do universo ficcional que elas criam. Ora, Paulo, só isso já é um gênero, já é um traço de um gênero, tá? Por quê? Porque se a presença do sobrenatural imediatamente faz alguém colocar o termo literatura de gênero num romance, por que a ausência do sobrenatural também não faz eu colocar o termo literatura de gênero em um romance que não tem o sobrenatural? 

Portanto, o realismo e suas diferentes vertentes é literatura de gênero também. E a grande pergunta é: O que eu estou querendo comunicar na avaliação que eu faço daquela obra literária, quando eu uso o termo gênero ou eu não uso o termo gênero? E aí, como a gente percebe, se eu estou usando o termo literatura de gênero, eu estou hierarquizando de maneira negativa aquela literatura que parece se colocar numa caixa, enquanto a grande literatura com L maiúsculo não estaria nessa caixa. Mas é impossível que qualquer obra literária não tenha as suas características recorrentes, porque essa obra literária não nasce do vácuo, ela nasce do diálogo com a tradição e do diálogo com suas outras obras. 

Vou dar um exemplo, eu estou lendo pela primeira vez a Annie Ernaux, estou achando muito interessante a obra dela, eu estou lendo Os anos, e claramente, do que eu já li sobre a Annie Ernaux e do que eu estou entendendo da obra dela, ela reitera e retoma uma série de pontos em comum com outras obras que passam por uma escrita biográfica, por uma escrita da autoficção. 

Por que o horror na literatura é chamado literatura de gênero e a autoficção na literatura não é chamada assim? Isso não diz respeito à qualidade do horror ou da autoficção. Isso diz respeito muito mais ao olhar de quem está com ideias preconcebidas lendo a literatura.

Na edição mais recente da sua newsletter, “Linguagem Guilhotina”, você falou sobre a pesquisa de campo para escrever. E disse já ter sido um “militante da imaginação” O que os escritores e escritoras de literatura fantástica podem aprender com a literatura realista?

Então, Paulo, essa pergunta é muito legal. Primeiro, inclusive, esse ano eu publiquei um ensaio que pensa um pouco sobre essas questões e eu analiso tanto autores mais realistas quanto o [Anton] Tchekhov, por exemplo, quanto autores que trabalham com o fantástico e com o horror, como a Mariana Enríquez. E aí, cara, primeiro assim, não existe diferença entre literatura realista e literatura fantástica. Em que termos? Em que sentido? No sentido, Paulo, que toda literatura é um ato de fabulação. 

Toda literatura é resultado de um processo imaginativo. Naqueles contos do Machado de Assis que vão mais para um realismo mesmo, do século XIX, e naqueles contos em que aparece a Rua do Ouvidor, por mais que haja uma precisão daquela Rua do Ouvidor na obra de Machado de Assis, essa Rua do Ouvidor não existe. Ela só existe na prosa de Machado de Assis. Naquilo que da Annie Ernaux é mais tendente para uma escrita ficcional, aquela França que existe na Annie Ernaux só existe a partir da subjetividade dela. Os Anos [livro de Annie Ernaux] é uma proposta de fazer uma história do século XX, de parte do século XX, a partir de uma voz coletiva feminina e a partir do corpo feminino como centro dessa história. Não é um romance, claramente. É inclassificável, como se fosse um ensaio histórico, memorialístico, eu poderia chamar assim. Mas mesmo quando não tem ficção, o modo como a Annie Ernaux cria essa voz coletiva que narra, é um eu coletivo feminino que narra o século XX, só isso já constrói o século XX dela. 

Esse século XX francês que está no livro dela é condizente com a experiência histórica que a gente mais ou menos compartilha, mas apenas em parte. Ele também é uma fabulação, porque ela precisou imaginar, ela precisou compreender essa história do século XX a partir da França, a partir do olhar da geração dela, do olhar feminino da geração dela. E ela teve que usar a imaginação para compor essa história, de alguma maneira. Embora tudo que ela conta seja algo da ordem do que aconteceu mesmo como fatos históricos. Então, mesmo num discurso como o d`Os anos da Annie Ernaux, a experiência subjetiva da França que está ali é exclusiva daquele livro. Então não existe literatura realista e fantástica nesse sentido, porque também as questões são todas as mesmas. 

Todos nós estamos falando sobre poder, sobre desejo, sobre fé, sobre sociedade, sobre sexo, sobre uma série de questões que podem ser abordadas por um viés mais realista ou por um viés mais fantástico, mas estamos falando as mesmas coisas, no fundo. E, além disso, a literatura realista, Paulo, quando ela se consolida na prosa de ficção a partir do século XVII, século XVIII, e vai chegando ao ápice da sua elaboração no século XIX em diante, essa literatura dá, digamos, a gramática de como escrever sobre a realidade. E mesmo se você está escrevendo uma fantasia que se passa numa terra paralela à nossa, se você está escrevendo uma ficção científica que se passa em outro planeta, você vai compor esse mundo da fantasia ou esse outro planeta usando as ferramentas de reinterpretação da realidade. que o realismo nos legou ao longo dos séculos. E é por isso que eu digo que, embora eu seja um escritor predominantemente de literatura fantástica, com muita influência do horror, por exemplo, ou da ficção científica, o realismo é o meu melhor amigo. 

Por quê? Porque, aí voltando agora mais especificamente para a minha prática como autor, enquanto o Gótico Nordestino tem um pé mais no horror, o meu próximo romance vai ter um pé mais na ficção científica. E talvez um pouco no realismo mágico também. Mas na minha literatura, eu preciso compor a realidade tal como a gente conhece. com personagens que têm uma psicologia verossímil, com tempo e espaço, que são tempo e espaço consensuais da nossa experiência histórica. E a partir desse mundo que é composto de maneira realista, aí eu começo a sacudir os alicerces desse mundo, inserindo ou o sobrenatural ou a sugestão do sobrenatural. Então, na verdade, no fundo, o realismo é a minha pedra fundamental de todos os mundos que eu crio. E a partir disso é que eu vou corroendo, tensionando esse ponto de partida inicial, que é sempre um ponto de partida do realismo, na minha escrita.

Essa pesquisa de campo que você fez foi para a escrita do novo livro. Fala um pouco sobre esse novo livro.

Campina Grande é a minha cidade natal, então a minha ida para lá tem motivos da vida pessoal, do momento que eu estou vendo a minha vida agora, que me levaram a buscar uma reconexão das minhas origens na Paraíba. Mas além dessa coisa da demanda da vida pessoal, tem realmente o fato de que, especificamente no Cariri, eu fui para buscar inspiração. 

Eu estou com o meu manuscrito do romance já pronto, e aí imediatamente, quando eu fui para o Cariri, eu entendi que eu precisava remodelar bastante o meu romance. Talvez expandir mais do que ele está, ele não vai ser um livro tão longo assim. E, cara, infelizmente eu não posso dizer muito, porque eu estou naquele processo do romance em que eu sinto que ele vai ser meu próximo livro, mas eu ainda não posso garantir que é ele mesmo. Seja porque vai que no processo final eu já não gosto dele, eu engavete, vai que no processo final, assim que meus editores puderem ler, eles falam, pô Cristiano, talvez não funcione. E aí o projeto não vai pra frente. Mas o que eu posso te falar? 

Eu posso dizer que o romance se passa pouco depois que o Bolsonaro perde a eleição. Ele se passa em João Pessoa, no Recife, em Campina Grande, e no Cariri paraibano. Ele tem uma relação com a ficção científica um pouco mais forte do que tudo que eu já tinha escrito antes, né? Ao mesmo tempo, algumas das questões do gótico nordestino voltam a aparecer, em especial as questões da família. É um romance em que também eu falo de algo que eu nunca aprofundei muito na minha escrita e que a partir de agora eu quero aprofundar mais, que são as relações amorosas, em especial os encontros e desencontros entre homens e mulheres. Isso está muito forte no romance. O que mais eu posso falar? Ah, sim, eu diria que esse romance, a escrita dele busca reconectar um pouco o meu estilo ao meu livro anterior ao Gótico Nordestino, ao Na outra margem, o Leviatã. Eu muitas vezes estou escrevendo o próximo livro como uma resposta, às vezes até um contraponto ao anterior. Então o Gótico Nordestino foi escrito um pouco como um contraponto ao Na outra margem, o Leviatã. E esse próximo livro, esse romance, ele é um pouco descrito como um contraponto em relação ao Gótico Nordestino, e eu volto a um certo estilo, um pouco mais experimental, que existia no meu trabalho antes de eu publicar o gótico. Então é um pouco isso que eu posso te falar.

| Entrevista organizada ao som do disco Equilíbrio distante, de Renato Russo |


Leia Cristhiano Aguiar


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