O vazio da maternidade | Entrevista com Suzana Amorim

Foto: Mel Knolow

Aqui não é cinema, mas já posso dizer que hoje temos uma grande estreia em cartaz. Esta é a primeira entrevista como escritora da minha convidada. E que entrevista, senhoras e senhores! Se Suzana Amorim (@suzana.amorim_) começa agora sua trajetória na escrita, com seu primeiro romance O peito oco, na fala, percebe-se o quanto ela já tem o manejo das palavras, que ela transfere para a literatura.

Em O peito oco (Auroras, 2024), Suzana mostra as alegrias e agruras de ser mãe, com uma personagem que, apesar da filha, continua com um grande oco no peito.

Na nossa conversa, falamos sobre autoficção, maternidade desromantizada, amadurecimento e muito mais. Vele muito ler até o final.



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Em O peito oco, a protagonista passa por duas grandes mudanças: o nascimento da filha e a morte da mãe. Como se deu a construção dessa personagem e a escolha por esses dois fatos tão marcantes?

O evento do nascimento da filha é um evento gatilho para a minha escrita. Eu, pessoalmente, vivi essa experiência. Eu tive minha filha em dezembro de 2019. Eu já escrevia há bastante tempo, mas coisas muito aleatórias, nunca tinha mostrado para ninguém, engavetava os meus textos. Sem ser os textos de psicanálise, que eu produzia durante a formação, mas textos literários, eu guardava. E aí, quando a Martina nasceu, eu fiquei com muita vontade de escrever sobre aquela experiência de parto, principalmente, que é a primeira cena do livro e é, na cronologia da escrita do romance, a primeira coisa que eu escrevi. 

Eu escrevi uma cena de parto quando ela tinha mais ou menos um ano e pouquinho. Foi uma experiência muito próxima a que eu vivi, mas o interessante que eu sempre comento é que eu já escrevi em terceira pessoa aquela cena. Eu não queria que fosse um diário, eu queria que fosse um relato de uma vivência, mas já com um certo distanciamento. Então, esse foi o ponto de partida para o romance começar a nascer, a acontecer. 

A morte da mãe da minha personagem veio um pouco depois, a ideia veio um pouco depois, quando eu já estava fazendo a estruturação do romance, o planejamento da história. Eu não tinha planejado isso inicialmente, mas eu achei que esse evento daria muitas camadas de sentido para a experiência da minha personagem como mãe. 

A ausência da própria mãe me pareceu compor o vazio que a minha personagem sentiu quando ela mesma se tornou mãe. Então eu achei que esse entrelaçamento de experiências fariam a minha personagem ganhar camadas subjetivas. Então eu decidi que eu mataria a mãe da minha personagem na narrativa para isso, como eu falei, dar um pouco mais de sentido a esse vazio que ela sente quando ela mesma experimenta a maternidade.

Na orelha de O peito oco, a escritora e editora Dani Costa Russo escreve que você “criou uma ficção com base na sua vivência”. O peito oco é uma autoficção? Como você enxerga a relação entre vida e ficção?

Eu adoro esse tema, adoro a interlocução entre “vida real” e ficção. Eu considero que O peito oco é, sim, uma autoficção, pelo fato de ter sido a minha experiência com a maternidade o disparador da minha escrita, dessa escrita estruturada e de uma narrativa longa. Mas muitos dos eventos que acontecem no livro não foram eventos que aconteceram comigo.

Tem personagens no livro que não são personagens da minha vida, essa vida vivida fora da literatura. Eu criei essas pessoas, muitas das pessoas. Inclusive, criei a protagonista também, porque a protagonista não é a minha imagem e semelhança. Ela vive muitas coisas que eu não vivi. Então, eu considero autoficção porque, nesse termo, existem os dois componentes, aquilo que eu vivi e aquilo que eu inventei. 

Por outro lado, eu também considero realidade e fantasia, vou chamar de fantasia para usar um termo da psicanálise, campos muito sobrepostos. Porque se existe na fantasia, existe de certa maneira na realidade. A realidade psíquica é tão real quanto essa realidade externa. Eu não consigo evitar falar de psicanálise, mas eu adoro essa intersecção entre os dois campos. 

Suzana Amorim por Mel Knolow

Então, se eu criei aquelas personagens, se eu criei essa história, de alguma maneira ela existia dentro de mim, em fantasia. Não é do nada que se escreve. Eu acredito que tudo que está no papel passa pela criatividade, pela mente do escritor. Então pode não ter acontecido o fato, pode não ter sido o factual dessa realidade externa compartilhada entre as pessoas, mas está lá, está na cabeça, está na criatividade, está no imaginário do escritor e da escritora. Então, mesmo quando uma obra é totalmente ficcional, ela nasceu a partir da imaginação do escritor. Então, em algum nível na fantasia, a história está presente. E se está na fantasia, está na realidade psíquica, que é tão real quanto essa realidade externa compartilhada.

Na vida da personagem, há uma diferença entre a expectativa de ser mãe e a realidade de ser mãe. Ela pula de alegria quando descobre que está grávida e fica sozinha no escuro da madrugada por causa do cansaço depois de ter a filha. Como você observa a romantização da maternidade?

Eu tenho pensado muito sobre isso. Acho urgente desromantizar a maternidade e salvar a infância. E por que eu tenho pensado sobre esse segundo bloco de salvar a infância? Porque eu tenho me preocupado em não dar a esse termo desromantizar uma conotação negativa. 


Para mim, hoje, o desromantizar a maternidade tem muito mais a ver com pluralizar as maternidades. Não existe um jeito certo, não existe um só jeito, não existe um padrão. Então, quando eu falo de desromantizar a maternidade, para mim, hoje, tem muito mais a ver com isso, pluralizar. Para que cada mãe se encontre com o seu próprio filho. Que as mães entendam, porque foi isso que eu entendi, que quem ensina a gente a ser mãe é o nosso filho, a nossa filha.

Então, desromantizar a maternidade é abrir mão dos ideais, abrir mão dos padrões, abrir mão daquilo que está previsto em cartilha, essa cartilha social é muito cruel, machista e patriarcal do que é ser uma mãe. Então, pluralizar a maternidade, para mim, é o imperativo atual. É dar a liberdade para que cada mãe entenda como é o seu próprio maternar. 

E a experiência da minha personagem, que, claro, está muito atravessada pela minha própria experiência, é de uma quebra total da expectativa que ela tinha de que ser mãe era algo instantâneo no momento em que a criança chegasse, se apresentasse no mundo de fora, fora da barriga. E o que ela encontra, na verdade, é uma construção, é uma necessidade de construção. Não é instantâneo, não é automático, é da ordem do encontro, é da ordem da criação daquilo que vai poder ser construído a partir desse encontro mãe-bebê, e aí eu tô falando mãe, mas pode ser pai, pode ser avó, pode ser o cuidado. 

E eu trago esse salvar a infância de um jeito importante hoje também porque existe ali uma criança que vai depender que alguém invista nela Então, a minha preocupação é não dar uma conotação negativa a esse termo. É uma conotação de realidades diversas. Também voltando à pergunta anterior, né? Realidades variadas e que cada uma possa criar o seu exercício materno a partir do encontro com seu próprio filho.

Quanto mais a gente puder falar sobre a pluralidade das maternidades, mais as mães vão poder entender seus estados. quando elas necessitam de ajuda, porque a romantização da maternidade também leva as mães a se sentirem pressionadas ou envergonhadas ou até culpadas de não estarem se sentindo plenas e felizes, disfarçam muitas vezes esse sentimento. 

E o que acaba acontecendo é um adiamento no pedido de ajuda, um adiamento até na própria percepção do que está se passando. E muitas depressões pós-parto, estados até psicóticos, puerperais, acontecem porque essa mãe não está sendo olhada. E se essa mãe não está sendo olhada, essa criança também vai ficar desassistida. Então por isso que é tão importante desromantizar a maternidade, para que a gente possa salvar a infância.

Pode-se considerar O peito oco como uma história de amadurecimento. A gente acompanha parte da juventude e da vida adulta da personagem. O que você acha que nos leva, como seres humanos, a amadurecer melhor: a perda ou a chegada de uma nova pessoa na nossa vida?

Nossa, que profundo isso, Paulo. E que bonito ter essa visão também de O peito oco, de uma jornada de amadurecimento da minha personagem. E nossa, que pergunta difícil. O que faz a gente amadurecer mais? As perdas ou as chegadas de pessoas na nossa vida? 

Me ocorre dizer que o que faz a gente amadurecer é a própria vida. Um pouco na linha do caminho se constrói conforme a gente caminha, sabe? Eu acho que encarar as circunstâncias e poder mergulhar fundo nos afetos, nas emoções, é o que faz a gente ser maleável na vida e acho que esse poder adaptativo e maleável é o que nos confere maturidade, poder encarar circunstâncias de frente e entender os lutos simbólicos de cada experiência, porque perda implica um luto naturalmente, mas algumas chegadas também implicam em lutos simbólicos. 

"Ninguém havia lhe dito que seria preciso parir uma mãe, além de parir a própria filha"

Trecho do romance O peito oco.

Então a maternidade, a chegada de um filho implica uma perda de uma versão anterior. Claro, se cada um tiver disposto a essa travessia, mas implica você abrir mão de uma versão anterior e de uma configuração sua que você conhecia até então, para criar uma nova. E me parece que essa disponibilidade para as transformações é o que nos faz amadurecer. Eu acho que é um pouco por aí, muito profundo essa questão.

Eu tive um professor na formação em psicanálise, Ed Oliveira, que dizia que o trabalho psicanalítico é tirar o sujeito de uma miséria neurótica e lançá-lo numa infelicidade comum. E a infelicidade comum é o que é mais interessante. Entender que a vida é composta de muitas emoções, de variadas emoções, e poder vivê-las com uma inteireza me parece ser algo muito maduro.

A história é narrada com uma alternância de tempos entre os capítulos, com momentos antes e momentos depois da filha. O que te levou a escolher essa estrutura narrativa?

Ai, que legal essa pergunta. Você sabe que o livro nasceu desse jeito? Eu não mexi na ordem dos capítulos e os capítulos já aconteceram dessa maneira alternada. Quando eu fiz a linha do tempo, é que eu precisei colocar os eventos na cronologia certa, da vida da personagem. Mas eu já escrevi nesse vai e vem. 

E acho que esse vai e vem da narrativa é muito semelhante ao vai e vem de um processo de análise, um processo terapêutico. Porque tem dias que você vai ao consultório da sua analista ou da sua terapeuta, e você fala de uma coisa que aconteceu num tempo super remoto. E tem uma outra semana que você senta para contar do que te aconteceu naquela semana, e que está super vivo na sua cabeça e você está precisando muito falar sobre aquilo. 

Então, essa estrutura narrativa, que foi algo inicialmente natural, se tornou algo intencional quando eu também me dei conta dessa semelhança ao próprio processo de análise desse vai e vem do que se conta. Tem dias que você quer falar da sua infância, da sua adolescência, das suas perdas ou das suas dos seus ganhos infantis e de coisas que aconteceram na sua vida no passado. E tem outras vezes que você quer simplesmente falar daquilo que te aconteceu muito recentemente e que está super pulsante na sua vida, nos seus conflitos e na sua cabeça. Então essa foi a opção dessa narrativa.

Na primeira e na última página do seu livro, a personagem aparece com o peito vazando. Da primeira vez, de forma literal, e depois, figuradamente. O que representa o peito oco no seu livro?

Que interessante! Essa leitura eu também nunca tinha ouvido do peito vazando na primeira e na última página do livro, que máximo! Incrível isso! O peito oco diz desse vazio, esse vazio interno. de um peito cheio de leite, porém oco. Uma curiosidade, o título do livro foi a última coisa que eu defini. 

Até então eu chamava de livro. Os meus arquivos do computador eram livro – versão tal. livro – versão tal. E eu ia atualizando desse jeito. Eu não tinha o título até terminar de escrever. E aí, um dia, fazendo exercício, porque eu corro e gosto de correr, porque penso melhor quando eu corro, eu comecei a pensar o que eu queria para o título do meu livro. 

Eu queria que fizesse referência ao corpo. Isso estava muito claro para mim, porque essa experiência corporal foi uma coisa muito importante, então era uma coisa muito importante. Só que eu queria um corpo não organizado, eu não queria um corpo preenchido. E aí foi um pouco esse o caminho que eu fui tendo. 

Depois pensei na palavra vazio, que é muito útil. o tom do que a minha personagem vive e se depara com a experiência materna. E aí eu cheguei na palavra oco, que me pareceu forte e sonora, e é um palíndromo além de tudo, né? Você pode ler de frente para trás e de trás para frente, é a mesma palavra. Então isso também ganhou um outro sentido e aí mais ainda eu fiquei certa dessa escolha. 

O peito já tem um duplo sentido, pode ser o peito literal e o peito enquanto esse lugar das emoções, enquanto oco. Você lê de trás para frente, de frente para trás e quer dizer a mesma coisa. Então, essa multiplicidade de significados foi o que me fez definir pelo título O peito oco, com essa referência ao peito. 

E, além de tudo, o que é oco tem a possibilidade de ser preenchido. Está oco, mas pode ser ocupado por algo. Então, o que também talvez denote esperança e possibilidades de criação, construção, que é também uma característica do livro e até remetendo a isso que você falou do amadurecimento, algo que pode ser construído, preenchido.

A personagem, quando está trabalhando na xerox perto da universidade, entra em contato com dois livros: A interpretação dos sonhos, de Freud, e A descoberta do mundo, de Clarice Lispector. Quais livros marcaram a vida da Suzana psicanalista e da Suzana escritora?

Nossa, essa eu até parei um tempinho aqui para pensar, mas vai ser roubar muito citar os mesmos? Não foi à toa que eu escolhi esses dois livros para estarem no livro, no meu romance, quero dizer, né? Eu vou citar outros também, mas eu quero primeiro falar desses dois. 

A Descoberta do Mundo, da Clarice Lispector, é o meu livro de cabeceira. E foi um livro que eu tive contato quando eu tinha 19 anos. Eu estava fazendo teatro na época. Eu sou atriz também, né? Eu fiz o curso no Teatro Escola Macunaíma. E a gente ia montar uma peça com uma homenagem à Clarice Lispector. Então eram textos dela, alguns contos. E cada ator e atriz tinha a liberdade de escolher um texto da Clarice para criar uma cena, para encenar. 

E aí eu comecei a pesquisar a obra da Clarice. Já tinha lido poucas coisas na época, mas já gostava, já me sentia muito arrebatada por ela. E foi quando eu comecei a ler com muita intensidade. E quando eu cheguei na descoberta do mundo, eu lia em voz alta para quem estivesse no ambiente comigo. Eu falava para minha mãe, para o meu pai, para os meus irmãos, enfim, quem estivesse por perto, eu falava, pelo amor de Deus, ouve isso aqui. 

E aí lia uma crônica dela em voz alta, porque eu estava tão fascinada, eu fiquei tão fascinada por ela, que eu queria que todo mundo tivesse acesso. Então, A descoberta do mundo foi muito importante. 

Mas teve um outro livro dela, que talvez para a Suzana escritora foi um dos mais marcantes, que foi A Paixão Segundo GH. Acho que é um livro que tem mais palavras grifadas do que não grifadas. Realmente foi muito importante. Eu tenho uma sensação, quando eu li a primeira vez, que eu já li mais de uma vez, mas quando eu li a primeira eu devia também estar na casa dos 20 anos, e eu senti a obra. Mais do que ler a obra, eu senti a obra. 

E do Freud e da psicanálise, A interpretação dos sonhos é o marco da psicanálise. É a pedra fundamental da psicanálise. E também fiquei muito maravilhada quando tive acesso à obra do Freud. 

Mas tem um outro que, na minha formação, foi muito importante e que eu recomendo para todo mundo que tem curiosidade pela psicanálise ou que deseja se tornar analista, que é Cartas a um Jovem Terapeuta, do Contardo Calligaris. Calligaris é um autor que eu amo, que foi muito importante para a psicanálise, e esse livro dele é fantástico. fala sobre o início dele na clínica, fala das angústias que todo analista compartilha no começo de jornada. Então, também foi um livro muito marcante no meu início, lá atrás.

A epígrafe do meu livro é da Clarice e, como eu comentei, eu li A Descoberta do Mundo quando eu tinha 19 anos e teve uma crônica que eu nunca me esqueci. E quando eu terminei de escrever o livro e comecei a pensar no que seria a epígrafe, esse texto me veio à cabeça. É quase como algo decorado, assim, marcado no corpo mesmo. É uma crônica curtíssima, né? A Descoberta do Mundo é uma coletânea das crônicas que ela escreveu para o jornal durante alguns anos. E se chama “Amor à Terra. Então, quem tiver curiosidade, confere lá no livro.

| Entrevista organizada ao som do disco O dia em quem faremos contato, do Lenine |


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