
O real importa menos | Entrevista com Guilherme de Marchi
Foto: Carol Fleury
Final do ano chegou. Época que combina muito com férias, sejam as escolares ou as de trabalho. E foi assim, no primeiro dia das férias do advogado e escritor Guilherme de Marchi, que nós conversamos. E apesar da leveza que esse período pede, foi um bate-papo denso, cheio de profundidades.
No seu primeiro romance O visitante (Patuá, 2024) @editorapatua, o escritor e advogado Guilherme de Marchi (@guilherme.de.marchi) narra as vivências e reflexões de um pai que se vê entre o presente e o passado.
Na nossa conversa, falamos sobre paternidade, maternidade, a figura da família na literatura, o papel da memória na construção dos fatos e muito mais. Vale muito ler até o final.
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A maternidade, com seus desafios, tem se destacado como um tema cada vez mais relevante na ficção, sobretudo na ficção escrita por mulheres. No seu romance O visitante, você aborda o outro lado da moeda ao falar sobre paternidade. Por que você escolheu falar sobre esse tema?

Paulo, essa escolha da paternidade em si, ela não foi uma escolha tão consciente assim, mas ela acabou coincidindo com o meu retorno à literatura, vamos dizer assim. Então, eu tenho uma formação em Direito e quando eu comecei a graduação em Direito, eu também fiz literatura, fiz Letras, mas não cheguei a concluir a graduação de Letras, por outros compromissos e pela forma como o direito foi comprometendo boa parte da minha trajetória profissional.
Então, eu sempre tive um contato através de leitura, uma vontade de escrever, e o meu próprio processo criativo surgiu justamente nesse contexto, que foi o contexto da paternidade. Mas eu costumo falar que o livro O Visitante, ele não é um livro que toca em si a paternidade, mas a paternidade acaba sendo um ponto de partida para esse processo criativo.
“O livro O Visitante não é sobre paternidade, mas ela serve como ponto de partida para falar de memórias. A experiência de ser pai nos provoca a acessar lembranças e entender como elas nos constroem.”
Guilherme de Marchi
Ela coincidiu com esse momento, um momento onde, talvez no marco zero do romance, a gente tinha ali o Castelar, que é a figura central de O visitante, e a minha figura como pai, pai de três filhos, ali a gente estava no marco zero, dentro de um mesmo ponto, mas à medida que o romance foi se desenvolvendo, e com o afastamento até dessa perspectiva da paternidade, ela foi se tornando menos autobiográfica, mais autoficcional e com essa perspectiva do ponto de partida da paternidade.
E eu acho que ela é um ponto importante porque ela é o pressuposto das memórias, e é um livro que fala sobre memórias, e eu acho que a perspectiva de se tornar pai e de viver nesse contexto, ela também nos provoca a visitar, a acessar algumas memórias e entender, através de uma racionalidade mais uma criatividade, como que isso nos construiu e como isso nos permitiu chegar de alguma forma num ponto de onde o narrador ele enxerga e ele constrói a ficção.
Só complementando também, Paulo, eu acho que existe muito na ficção, existe muito na narração, existe muito nos espaços de fala, a construção de uma maternidade também. E eu acho que isso vem junto com uma responsabilidade social, que as várias frentes que imprimem sobre uma mulher trazem essa responsabilidade de uma maternidade, dar conta de uma vida profissional, dar conta de uma posição dentro de um contexto ao qual ela está inserida, e pouco se fala da paternidade.
“A maternidade é amplamente discutida na literatura, enquanto a paternidade ainda precisa ser mais explorada. Hoje, os pais enfrentam responsabilidades que nossos pais talvez nunca imaginaram.”
Guilherme de Marchi
E dentro dessa perspectiva do livro, que é um livro de memória, eu acho que exige um confrontamento natural de uma perspectiva dos nossos pais, de uma geração anterior, que é uma perspectiva de paternidade diferente da qual nós, pais de hoje, estamos inseridos.
Então, exige, eu acho, uma responsabilidade, uma ativação, enquanto pai, diferente do que os nossos pais viveram. E isso se deve a uma série de fatores. Então, de alguma forma, o livro também toca nesse ponto, não como uma perspectiva consciente, mas de uma maneira tangencial, essa perspectiva dessas paternidades que se confrontam.
Uma paternidade ou uma estrutura de relação pai-filho, a qual nós estivemos inseridos enquanto filhos, e a perspectiva de uma construção social bem diferente, que é uma construção de uma mulher que se emancipa, de uma mulher que se ativa, e de um homem que passa também a dividir outras responsabilidades, que os nossos pais… talvez não tiveram. Então, existe um confrontamento implícito, tácito, tangencial, e menos óbvio, que é dessas perspectivas e desses confrontamentos. E nesses momentos, acho que o Castelar não encontra um espelhamento na figura do seu pai, de como o pai dele representa essa responsabilidade e de como ele projeta isso para sua própria experiência.
Aproveitando que você falou sobre sua formação em Direito: você é formado em Direito e atua como advogado. O Direito influencia de algum modo na tua escrita literária?
Sobre essa questão, Paulo, da minha experiência profissional, eu acho que tem uma perspectiva mais óbvia, é o fato de que a gente utiliza um mesmo instrumento de trabalho, que é a linguagem oral, que é a linguagem de uma forma geral.
Eu acho que no Direito, assim como na literatura, existe um trabalho persuasivo. Eu acho que no Direito a gente tem ali uma tese a ser defendida, mas eu acho que na literatura nós temos uma construção a ser defendida, um enredo, um personagem, e essa defesa acontece através da humanização ou da universalização dos debates que estão sendo trazidos ali.
“A família é o ambiente mais humanizante que existe. É onde potencializamos tanto nossas virtudes quanto nossos vícios, tornando-a uma fonte inesgotável de histórias críveis e complexas.”
Guilherme de Marchi
É uma experiência de quem também consegue enxergar a perspectiva literária e a perspectiva das artes de uma forma geral como um outsider, vamos dizer assim. Eu estou dentro de um ambiente corporativo. Sou sócio de um escritório de grande porte, atuo defendendo bancos. Então trabalho dessa forma, tenho uma empresa de tecnologia do qual sou sócio também.
Então eu estou no dia a dia dentro de um ambiente corporativo onde nós estamos discutindo de alguma forma o capital. E isso me traz ao mesmo tempo um alinhamento à questão artística e uma mesma necessidade de me impulsionar a isso através da literatura.
E também uma perspectiva de quem está fora, ou de quem consegue também enxergar ou ter um novo olhar sobre as artes, de quem precisa consumir, de quem precisa consumir, de quem não está o tempo todo inserido, de quem não está o tempo todo cercado por uma discussão artística, e aí a arte, ela parte muito mais como uma necessidade de dar conta, dessa realidade imanente do que necessariamente como uma trajetória, vamos dizer assim, basicamente um afastamento de percurso para dar conta de uma trajetória corporativa, etc.
A história de O visitante mostra Castelar na sua relação com sua família, seja como filho, como pai ou como marido. Por que você acha que a figura da família é tão usada como núcleo na construção de conflitos dentro da ficção?

Paulo, acho que você observou bem, a família está sempre como núcleo de muitos conflitos, acho que a família tem um potencial literário muito forte, e eu acho que primeiro porque nós estamos falando das nossas relações formativas, então ali eu acho, nós estamos experimentando,
Eu acho que é o ápice da alteridade e das complexidades que nos formam. Nós estamos falando de onde a gente potencializa o amor, de onde a gente potencializa o ato de se doar, onde a gente potencializa os nossos egoísmos, onde a gente potencializa as nossas crises de ódio, de ansiedade.
“Era uma existência tensa, que controlava os decibéis das pessoas, do que acontecia”
Trecho do romance O visitante
Então, todas essas coisas estão dentro do ambiente familiar, que é um ambiente onde a gente constrói todas essas características. Então, acho que é um ambiente muito fértil para que a gente consiga encontrar, eu acho, narrativas e a gente encontrar perspectivas que sejam verossímeis, eu acho que elas sejam críveis.
A gente estava falando há um tempo, na pergunta anterior, sobre essa necessidade… persuasiva, essa necessidade de defender um enredo, de defender um personagem, e eu acho que a melhor forma que a literatura tem de defender personagens é apresentar complexidades, é apresentar características que humanizam, e eu acho que a família é o ambiente mais humanizante que a gente tem, e humanizante no sentido mais amplo de trazer todos os atributos que são valorativos, que são virtudes, mas também aqueles que são vícios, os nossos atributos de vícios.
Então, isso é um prato cheio e talvez a nossa principal fonte de construção de personagens que sejam verossímeis, que sejam persuasivamente convincentes.
“Eram seus peitos acessíveis como jamais tinham sido e que não eram meus. Não seriam novamente. Eram das visitas, dos vizinhos, eram só de de Júlia, talvez de um próximo filho que que planejamos nunca ter”
Trecho do romance O visitante
Em O visitante, há uma alternância de vozes que narram a história, sendo às vezes Castelar como pai que aparece (narrado em 1ª pessoa), às vezes Castelar como filho (narrado em 3ª pessoa). O que te levou a adotar essa estrutura?
Na verdade, eu enxergo três narradores ali, diferentes, acho que você enxergou bem, o próprio Castelar em primeira e terceira pessoa, eu acho que isso tem ali uma perspectiva inicial, do Castelar narrando em primeira pessoa os acontecimentos do presente, onde ali ele tem uma autonomia e eu acho que uma capacidade de construção crítica do que lhe acontece, tem uma narrativa em perspectiva que é em primeira pessoa, em terceira pessoa.
E eu acho que existe uma necessidade premente dele de distanciamento daquilo que de alguma forma o constitui, e aí essa narrativa é dele próprio, mas uma incapacidade dele de trabalhar com a memória e com os afetos em primeira pessoa, mas existe também uma terceira voz, que é a voz da mãe, através dos seus escritos, através dos seus textos e dos seus artigos, e que isso aparece também no livro, onde a gente tem alguns momentos até a narração dos mesmos acontecimentos, só que na perspectiva da mãe,
“Um escritor é, antes de tudo, um bom observador. Cada detalhe da vida — um gesto, um olhar, uma conversa — pode se tornar literatura.”
Guilherme de Marchi
E aí há uma perspectiva totalmente diferente da construção do Castelar. E acho que quando a gente tem um narrador externo, a mãe, falando desses mesmos acontecimentos, com outros afetos, com outros vieses, eu acho que isso traz um ponto crítico para a narrativa e para o próprio Castelar, de como a nossa memória é uma narração mais um afeto e de como isso constrói um real, que é um real em perspectiva.
E a memória, acho que é muito disso, a memória é uma opinião afetiva também, ela é o acontecimento, mas como o afeto se deu com esse acontecimento. E isso faz com que o Castelar duvide da própria narração, duvide da própria narração da mãe e que isso faça com que a realidade, de alguma forma, também permaneça em suspenso.
E, em alguma medida, a realidade talvez seja o que menos importa. Eu acho que o que de fato aconteceu, o que de fato moldou os acontecimentos que formaram a construção da infância do Castelar, talvez os fatos sejam menos relevantes, mas acho que o ponto crítico é que essas três vozes, dissonantes, e em alguma forma também uníssonas dentro de um mesmo fato trazem, é que o fato ou o acontecimento histórico, ele talvez seja menos relevante, mas a memória ou o que ficou, ou a verdade que é contada é justamente o fato mais o afeto e nisso nós estamos falando de narração.
No seu livro, o tom reflexivo se destaca, com frases afirmativas em meio à narração. Como você enxerga a relação entre expressar um pensamento e contar uma história?
Paulo, em O Visitante, eu acho que teve uma escolha, e talvez uma das poucas escolhas ali muito conscientes que a gente teve foi que eu tivesse um narrador reflexivo, um romance psicológico, vamos dizer assim. E eu acho que essa é uma escolha, e é uma escolha que foi defendida ao longo do enredo, e é justamente esse ponto da perspectiva sobre a história, sobre o fato.
Então, para que isso fosse construído, para que isso fosse melhor desenvolvido, isso precisou ser defendido até o final. Mas eu acho que se defende uma história através de um fato, ou da construção ou desenvolvimento do enredo e etc.
Eu acho que talvez esses são desafios para próximas obras ali, onde eu acho que gostaria de me desafiar a adotar uma abordagem onde o enredo fosse um ponto mais alto. A impressão que eu tenho do visitante é que o enredo importa pouco, que o enredo é coadjuvante em detrimento desse tom reflexivo. Mas eu creio e acredito muito também nas narrativas ou nas experiências literárias onde o enredo se sobressai, e o tom reflexivo é algo que se complementa no leitor. Então, acho que foi uma escolha literária, mas eu acho que outros caminhos poderiam ser abordados, e eles são muito interessantes, e eu acho que eles seriam desafios para uma próxima experiência minha também.
No colofão do seu livro, você escreveu “A literatura é necessariamente autobiográfica desde que não se tenha nenhum compromisso com a verdade”. Explica pra gente essa afirmação.
Bom, Paulo, a minha intenção em dizer que a literatura é necessariamente autobiográfica, ela parte do ponto de que você escreve, do que você vivencia.
Eu acho que nenhuma literatura se sustenta com uma perspectiva superficial. E para que a gente consiga aprofundar, para que a gente consiga ter verticalidade num enredo, em um personagem, em um conflito, acho que em alguma medida a gente precisa experimentar essas dimensões pessoalmente, porque existem complexidades, e eu acho que existem coisas que trazem verdade às narrativas que elas são experimentadas, e eu digo não experimentadas necessariamente em primeira pessoa.
Eu acho que quando a gente tem uma experiência em primeira pessoa, a gente tem uma pesquisa, eu acho que a gente tem um arcabouço, que é um arcabouço muito acessível, muito fácil de ser pegado, de ser colhido e de ser apresentado.
Mas um escritor é um bom observador, um bom ouvinte, toda experiência é uma experiência que pode se tornar literária, quase como se você estivesse com a sua antena literária a postos.
Então, um embarque no avião, umas férias, você observa alguém tomar um drink, alguém fumar, como você observa alguém tomando uma cerveja, alguém sentado em um bar, como você observa seu filho se desenvolvendo, toda essa perspectiva do espectador, ela passa a ser uma experiência literária.
Então, nesse sentido, eu creio que um escritor vivencia isso e ele consegue traduzir isso para um livro na medida em que ele se aprofunda através da sua própria experiência, através da observação.
E para mim o ato de escrever ou de fazer ficção é como você coloca isso no papel e aí eu acho que existe e eu descobri esse processo no ato de escrever, é como um fato experimentado. ele se torna ficcional, que é o fato de que quando você senta e quando você começa a trazer corpo para a experiência, ela extrapola, e no momento que ela extrapola, ela deixa de ter compromisso com essa verdade.
Porque às vezes você vai dizer, olha, esse sentimento aqui, ele é um sentimento que vai te levando ali para uma potencialidade, ou um acontecimento, ele poderia ter um acontecimento fático poderia ter ido para um outro caminho e isso traria outras perspectivas. E você vai enxergando e construindo isso na literatura.
E aí é quando você transforma aquela experiência observada ou presenciada ou sentida, você transforma ela em uma ficção. Então esse para mim é um ato de escrever. O fato de você trazer uma experiência… vivida ou presenciada, ou observada, para o campo ficcional, como você extrapola essas dimensões.
| Entrevista organizada ao som do disco Rage Against The Machine – XX (20th Anniversary Special Edition), de Rage Against the Machine |
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