A solidão do escritor | Entrevista com Marco Severo

No seu último livro, Clarice Lispector inseriu, um abaixo do outro, doze alternativas de títulos ao nome do romance A hora da estrela (a lista é facilmente vista em qualquer edição do livro, intercalada por vários “ou”, assim: A hora da estrela ou A culpa é minha ou Ela que se arranje ou O direito ao grito ou…).

Já José Saramago teve o título do seu primeiro livro alterado a contragosto. Seu romance de estreia, ao qual ele deu o nome de A viúva, foi publicado como Terra do Pecado, “sem que José Saramago tenha chegado alguma vez a conformar-se com a alteração”.

Trago esses fatos do mundo literário porque, para o nosso entrevistado de hoje, o título é uma parte muito importante dos seus livros. Os títulos dos livros do escritor Marco Severo (@marcosevero_) chamam atenção por serem longos e provocadores.

Conversamos especialmente sobre um dos seus livros, Cada forma de ausência é o retrato de uma solidão (2017, Editora Moinhos @editoramoinhos), em cujos contos ele mostra como a vida pode ser brutal em um mundo onde todos são, acima de tudo, pessoas sozinhas.

Na nossa conversa, falamos também sobre solidão, rotina de escrita, limites da ficção, escrita do conto e muito mais. E no final, ele ainda deixou alguns conselhos para quem escreve ou deseja escrever.

Vale ler até o final.



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A SOLIDÃO DO ESCRITOR

No seu livro Cada forma de ausência é o retrato de uma solidão (2017), há muitos personagens solitários, que vivem diferentes tipos de solidão, como a solidão angustiante de Alonso no conto “O lado de cá da prisão” ou solidão resoluta do personagem do conto “Caminho aberto a facão”. A solidão é uma faca de dois gumes?

Quando eu pensei no recorte para esse livro, pensei justamente em retratar diversas formas do que seria estar só. Muitas vezes, estar só também significa estar rodeado de gente. Também significa estar só por vontade, o que hoje chamam de solitude.

Acho que a solidão, como quase qualquer coisa na vida, forçosamente tem dois lados. Há a solidão entranhada naquelas pessoas que têm mais dificuldade com o trato social, que são mais introspectivas, e há a solidão forçada por circunstâncias, pelo lugar em que a pessoa está. Difícil mesmo é saber como se portar diante da solidão.

Os eventos dos contos do livro têm muito a ver, como quase tudo que escrevo, com questões essencialmente existenciais. É o ser humano colocado diante de si próprio. E aí, o que ele vai enxergar? Como lida com o que está enxergando? No caso desse livro, tem essa ideia de ausência, solidão, abandono, muitas vezes de si próprio. Então, é o ser humano diante de si mesmo e de como ele tem que lidar com esse sentimento. Isso pode descambar para muita coisa.

Como você enxerga a solidão para quem escreve?

Como algo necessário, que para algumas pessoas pode ser um mal necessário. A gente precisa da solidão para escrever. Essa é uma das grandes dificuldades desse fazer artístico: ter nosso tempo respeitado. Precisamos estar cercados de pessoas que compreendam essa necessidade.

Mas mais do que estar só, trata-se de voltar-se para si, perscrutar a si próprio, para saber o que de fato se quer escrever, como se quer escrever, sabendo que o resultado estará distante do que se idealizou. Mas esse olhar para dentro é muito importante e faz parte desse conjunto de ideias do estar sozinho.

Sempre ouvi dizer que o passado da gente uma hora acaba voltando para nos assombrar. Azar. Se aprendi a deixar atrás de mim pilhas de corpos, aprendo a deixar os meus fantasmas também.

Trecho do conto “Caminho aberto a facão”, do livro Cada forma de ausência é o retrato de uma solidão

Ao mesmo tempo, precisamos viver, andar, estar atentos ao mundo, participar dele. Porque se só se isolar para escrever, sobre o que se vai escrever? Esse é o dilema.

Lembro de duas histórias. A filha do Rubem Fonseca dizia que, quando criança, queria falar com o pai, e a mãe dizia: “Não entre ali, seu pai está escrevendo”. Já Alice Munro, quando anunciou sua aposentadoria da escrita em 2012, disse que queria finalmente poder se socializar com suas amigas. Ou seja, ela rejeitou o isolamento por anos, mas, no final da vida, quis vivenciar o mundo. Sem essa solidão, seja ela convidada ou não, para mim, não há escrita possível.

INFÂNCIA E BRUTALIDADE NA FICÇÃO

Outro ponto que se destaca nos contos de Cada forma de ausência é o retrato de uma solidão são as crianças. Você mostra uma infância desromantizada. De onde vem seu interesse por criar personagens crianças?

A criança está no mundo permanentemente, é o processo inicial da formação do adulto que seremos, e movimenta o mundo de muitas formas. É a partir do olhar da infância que muitas vezes compreendemos não só o adulto, mas como enxergamos o próprio mundo.

O conceito de infância mudou ao longo dos séculos. Antes, a criança era vista como um adulto em miniatura. Hoje, entendemos melhor suas necessidades e emoções. Mas sempre houve crueldade infantil. Criança não é só um ser bonitinho e fofo. Ela pode ser muito cruel, e é, em determinadas circunstâncias. Então, não a coloco no lugar da inocência.

Dentro desse livro, a criança também é vítima da solidão e das ausências, muitas vezes agindo por impulso, sem o controle que o adulto tem. A infância revela o adulto, mostra os caminhos que a sociedade toma. A criança ilumina, mas, às vezes, essa iluminação vem carregada de trevas.

Era a primeira vez na vida que eu me deparava com alguém que estava no mundo preso ao próprio corpo, provavelmente sem sequer saber-se vivo, emprisionado dentro de uma realidade da qual não tinha como escapar.

Trecho do conto “Mudança”, do livro Cada forma de ausência é o retrato de uma solidão

Um dos aspectos dessa desromantização, nos seus contos, é a brutalidade dos personagens – das crianças, mas também de muitos outros, e da própria vida. Até que ponto da crueldade humana a ficção pode ir? Ou qual o limite da ficção?

Ficção não tem limite. Não precisa ter pacto com o politicamente correto, nem com discursos do seu tempo. Não tem compromisso com o certinho, com palavras fofas. O limite da ficção é o da imaginação do escritor e do que ele consegue dizer.

Existe uma diferença entre o que se quer dizer e o que se consegue dizer. E esse conseguir não está só na mão do escritor, mas também na forma como o leitor recebe aquilo. Mas para a ficção em si, não existe limite nenhum.

O AMOR PELO CONTO

Você já publicou cinco livros de contos (tenha acesso a todos no final desta entrevista). Quem acompanha você sabe que esse é um dos seus gêneros literários favoritos, como escritor e leitor. Que motivos você pode dar para as pessoas lerem mais contos?

O conto, em geral, leva menos tempo para ser lido. Não significa que seja uma leitura rápida ou fácil. Edgar Allan Poe defendia que um conto deveria ser lido de uma vez só, mas não acho que isso seja uma regra. Um bom conto pode ter um impacto tão grande quanto leituras mais longas.

É impossível ler certos contos de Tchekhov, Alice Munro, Machado de Assis ou Lygia Fagundes Telles sem se encantar. Algumas pessoas dizem que preferem romances porque querem conviver mais tempo com os personagens. Mas são prazeres diferentes. Como tomar um sorvete ou uma água de coco.

O conto traz pequenas moléculas do comportamento humano, da existência, de forma concentrada. Quando bem realizado, explode na cara do leitor, como acontece nos contos de Cortázar ou do peruano Julio Ramón Ribeyro. O conto traz tudo isso de forma condensada.

Todos os seus livros têm uma coisa em comum: títulos longos e de algum modo provocadores. Como acontece a escolha dos títulos dos seus livros?

Nem eu sei direito. Não é que seja difícil pensar em um título, mas requer trabalho. Meus títulos longos vão mudar, tenho algumas ideias curtas para o futuro. Mas sempre penso no recorte temático antes. Meus livros de contos têm uma espinha dorsal.

No caso da solidão, queria escrever contos que tivessem essa temática. Escolho palavras-chave e experimento combinações. Meu título nunca é o nome de um dos contos do livro. Quero que ele englobe toda a ideia por trás da obra. Gosto que o leitor possa interpretar o título de diferentes maneiras, quase como um microconto. Para mim, o título tem que provocar essa reflexão.

Outro gênero que você escreve é a crônica. Já foram dois livros de crônicas, Os escritores que eu matei (2015) e Coisas que acontecem se você estiver vivo (2018). Qual a diferença entre o processo criativo do Marco contista e do Marco cronista?

O Marco contista é um ser, é um homem que escreve a partir das minhas próprias angústias em relação ao mundo. Eu tenho um olhar para o mundo que tende a ser um pouco esperançoso sem otimismo. Eu tenho esperança de que alguma coisa possa mudar para melhor, mas eu não tenho o otimismo de que isso vá acontecer, dadas as circunstâncias e as conjunturas do mundo que a gente vive. Então, o contista é profundamente existencial e tem muito esse recorte de um mundo mais desencantado, mais desalentado. Embora eu não pense que eu escreva contos depressivos. A minha contística, eu penso que está situada dentro de um olhar daquilo que o mundo é capaz de fazer. Do que nós somos capazes de fazer ao mundo, e as consequências desses atos, tanto para quem está ao nosso redor como para quem os faz.

Já o Marco cronista é mais solar, embora também tenham questões ali de comportamento e tudo, porque também é isso a crônica, mas é pela própria natureza da trivialidade da crônica.

CONSELHOS PARA ESCRITORES

Qual conselho você poderia tirar da sua caixa-preta de escritor para dar aos que lêem essa entrevista e que também escrevem ou querem escrever?

Leia muito. Sem repertório literário, não há literatura. Se quer escrever, crie uma rotina de escrita. A biologia humana precisa de rotina. As pessoas dizem que não gostam de rotina, mas precisam dela. Não de mesmice, mas de rotina. Escrever regularmente faz o escritor perceber sua própria linguagem. Ele para de imitar e começa a desenvolver sua voz. Aprende a estruturar melhor seu texto.

Outra dica: se travar, vá andar. Rubem Fonseca me disse isso uma vez, e é verdade. Ande sem rumo, observe as pessoas, o mundo ao redor. Muitas vezes, isso resolve bloqueios e faz a história fluir novamente.

| Entrevista organizada ao som do disco Secrets, do Pink Floyd (Bootleg album) |


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