
Arte e identidade | Entrevista com Kael Vitorelo
Foto: Clara Dias
O que é escrever? Será que escrever é apenas grafar as letras do alfabeto formando palavras e frases? Ou inclui outras linhas e traços além das que formam essas manchas no papel e na tela? O desenhista Saul Steinberg disse que “Desenhar é como escrever (…) Desenho para explicar as coisas para mim mesmo”.
E quando algo foge da palavra e não pode ser expresso por ela, o que resta? Outros traços e linhas podem substituí-las?
O nosso convidado de hoje disse que, “na juventude, enxergava o desenho e a escrita como formas de expressar coisas para as quais não tinha vocabulário”. E foi nessa junção entre palavra e imagem, entre as linhas das letras e dos desenhos, que aconteceu nossa conversa.
O Designer, artista e pesquisador Kael Vitorelo (@vitorelo.art), autor da HQ Filosofia do Mamilo (@editoraveneta), não hesita em falar sobre o que não entra em uma categoria específica: seja na escrita, seja no desenho ou na vida, ele mostra como romper barreiras impostas pela sociedade.
Falamos sobre a relação entre a experiência autobiográfica e a criação artística, o prazer e as trocas no encontro com os leitores, e luta pelos direitos das pessoas trans e dissidentes de gênero e sobre muito mais.
Vale ler até o final.
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A RELAÇÃO COM A ARTE E A AUTOBIOGRAFIA
Filosofia do mamilo é uma HQ autobiográfica. Sendo você uma pessoa trans, como a criação desse livro atuou na sua relação com você e com os outros?
Eu entendo que, ao me colocar enquanto autor e colocar minha experiência como obra, eu também acabo me colocando. Minhas opiniões e minha experiência ficam abertas para discussão, e é uma experiência muito diferente ser atravessado pelas opiniões de outras pessoas. Essas opiniões acabam sendo sobre algo que eu vivi, pautadas na minha experiência pessoal.

Por mais que seja autobiográfica, a obra não é uma reprodução exata da realidade. Isso exige que eu me posicione mais politicamente, o que é bom, mas também cansativo, ainda mais quando é uma pauta tão politizada e em disputa no momento em que vivemos.
O CONCEITO DE VAZIO E SUA RELAÇÃO COM A EXPRESSÃO ARTÍSTICA
Um dos pontos que chamam atenção na HQ é quando você diz, logo no começo, que decidiu arrancar os dois vazios que cresceram em você, se referindo aos seios. Com quais outros vazios você já teve que conviver?
Que pergunta profunda. Na minha adolescência, eu me sentia muito solitário por diversos motivos, relacionados à saúde mental, à depressão, à ansiedade. É difícil nomear esses vazios, e talvez isso seja bonito na arte: não precisamos diagnosticar tudo, podemos encontrar metáforas. Muitos desses vazios foram preenchidos, não necessariamente removidos cirurgicamente. Faz parte da vida encontrar vazios e percorrer diferentes paisagens.
“Filosofia do Mamilo não foi feito para preencher um vazio, mas para extravasar algo que me transbordava: uma raiva, uma vontade de denunciar algo que passei.”
Kael Vitorelo
A arte que você faz é um modo de preencher esses vazios?
Na juventude, eu enxergava o desenho e a escrita como formas de expressar coisas para as quais não tinha vocabulário. Hoje, não penso tanto em termos de vazios, mas em outras direções. Defendo no livro que a transgeneridade não deveria ser definida por disforias, mas pelos nossos prazeres. Filosofia do Mamilo não foi feito para preencher um vazio, mas para extravasar algo que me transbordava: uma raiva, uma vontade de denunciar algo que passei. A arte é multifacetada, comunicando e entretendo ao mesmo tempo.
OS PRAZERES E AS TROCAS NA ARTE

Gostei da sua perspectiva de foco nos prazeres. Então me diz quais são seus maiores prazeres como artista, como pessoa que se expressa através da arte.
Gosto muito da troca com os leitores, especialmente em feiras. Muitas vezes, são populações minorizadas, e a identificação é delicada. Alguns leitores ainda estavam escolhendo seus próprios nomes, e fazer parte desses momentos é especial. É interessante como escrever e desenhar, apesar de não serem confortáveis, me levam a lugares inesperados. As amizades que fiz nos quadrinhos e a pessoa que me tornei para defender meu trabalho são muito gratificantes.
A LUTA PELOS DIREITOS DAS PESSOAS TRANS
Fica bem claro, na leitura da HQ, o quanto é desafiadora a luta entre você, como pessoa trans, e todo um “cistema” de leis e procedimentos. (aproveitando a palavra que você usa). Como você acha que a leitura de Filosofia do mamilo pode ajudar nessa luta?
O livro coloca a perspectiva de uma pessoa trans e mostra a violência do processo judicial e burocrático. Ele pode funcionar como um letramento dessas questões e ser importante para jovens trans que ainda estão entendendo quem são. Não acho que o livro reformará o judiciário, mas ele expõe sua precarização. Muitos dos relatos que coloquei são coisas que gostaria de ter dito para quem trabalhou no meu processo judicial. Como autor, meu papel é comunicar essa realidade e contribuir para a luta pelo direito das pessoas trans e dissidentes de gênero.
“Como autor, meu papel é comunicar essa realidade e contribuir para a luta pelo direito das pessoas trans e dissidentes de gênero.”
Kael Vitorelo
AS DISPUTAS COTIDIANAS DA EXISTÊNCIA TRANS
Algumas das situações em que essa luta é mais acirrada é no uso da linguagem, das leis e do próprio corpo. Qual dessas situações é mais difícil no seu dia a dia?
Talvez a questão dos banheiros seja mais presente. A leitura de gênero que as pessoas fazem de mim parece sempre particular, e tenho a sensação de que, qualquer banheiro que eu entre, alguém vai reclamar. As pessoas transfemininas e travestis são muito mais alvo de violências e fiscalização de gênero. Pessoas transmasculinas também sofrem violências, mas muitas vezes passam despercebidas devido às leituras que a sociedade faz.

“O prazer de ser incantegorizável” é algo que te move?
Não sei se me move, mas é algo que sou. Eu gosto de trabalhar nas intersecções das categorias. A categorizção é uma invenção humana e nem sempre se aplica a toda situação. O prazer de ser incategorizável é estar além dessas definições e convulsões da sociedade.
CONSTRUINDO UM MUNDO MAIS INCLUSIVO
O que é preciso para construir um mundo que conviva bem com uma “diversidade de mundos” e de corpos?
Eu tenho a sensação de que os direitos das pessoas trans estão sendo usados para criar pânico moral, especialmente por políticos mal-intencionados. É necessário ter consciência política e social. A informação e o diálogo são fundamentais, assim como integrar pessoas trans, não brancas, periféricas e com deficiência no debate. Prefiro acreditar que as pessoas não são preconceituosas de propósito, mas estão sendo manipuladas. Para mim, o caminho é sempre convidar pessoas diferentes de nós para contribuir nessa luta.
| Entrevista organizada ao som do concerto Liszt’s Transcendental Études, de Franz Liszt |
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