
Investigar o silêncio | Entrevista com Caléu Moraes
Foto: Echely Maria da Silva França
O nome da rosa, de Umberto Eco, A vida escolar de Jesus, de J.M. Coetzee, Tudo pode ser roubado, da Giovana Madalosso, Eu talvez desejasse matar poetas, de Dércio Braúna e, por que não, Livro sem nome, deste que escreve aqui. São muitos os livros que falam sobre livros, ou que têm esse objeto como parte central da narrativa.
Entre eles, podemos incluir o romance do nosso convidado de hoje, que, além de romancista, é pesquisador, investigador, historiador e ninja.
Caléu Moraes é autor do romance Schopenhauer e o Kung Fu, um livro que joga com aspectos históricos e inventados, numa história investigativa que envolve filosofia, humor e muitas referências a livros, alguns desconhecidos do leitor brasileiro menos especialista.
Na conversa que tive com ele, falamos sobre a investigação no fazer literário, sobre verdade e invenção, literatura oriental e sobre muito mais.
Vale ler até o final.
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A arte da narrativa
No seu romance Schopenhauer e o Kung Fu, é marcante o uso do recurso do mise en abyme, com histórias dentro de histórias. Isso, de algum modo, quebra a linearidade da narrativa. Como você enxerga a diferença entre histórias lineares e histórias fragmentadas?
Acredito que ambas têm seus méritos… Como leitor, há dias em que só quero me sentar (ou deitar) e ler uma boa história linear. Outras vezes, sinto-me muito mais atraído pelas histórias fragmentadas. Entre os méritos da história linear, quero destacar a questão da clareza. Não se trata, digo desde já, de se fazer histórias simples e fáceis de se compreender.

Quero dizer da clareza como recurso estilístico. Trabalho, entre outras coisas, no mundo acadêmico. E acabei, com o tempo, adquirindo certo gosto por textos organizados. Por outro lado, a riqueza ímpar das histórias fragmentadas também me agrada: a liberdade de se ler e se compreender qualquer coisa acerca dum texto é uma sensação maravilhosa.
Influências literárias
Sua escrita lembra a de Jorge Luis Borges, com um tom impassível e várias referências a livros (inventados ou não). Até que ponto a literatura do escritor argentino influencia a sua?
Borges é uma referência incontornável, creio. Descobri Borges muito jovem, aos 15 anos, por indicação de um primo. Ele é sim uma influência em meu trabalho, mas eu o vejo como uma influência mais distante. Não costumo pensar, atualmente, em Borges. Das duas uma: ou a influência dele é tanta que já tomou conta de mim a ponto de nem mesmo eu perceber; ou sou um terrível embusteiro. Prefiro acreditar na segunda alternativa.
Há um pouco de verdade na mentira e vice-versa. Gosto da literatura em que se faz uma baderna, uma bagunça com estes espaços.”
Caléu Moraes
Então existe algum autor ou autora, hoje, para o qual você volta com mais constância, em cuja obra você pensa mais quando vai escrever?
Hoje costumo ler Kenzaburo Oe. Leio tudo o que encontro do cara, seja em português, inglês, espanhol ou, ainda, adivinho algumas coisas em japonês. Ele tem uma literatura voltada para a própria literatura (coisa de que gosto demais), mas também para questões muito básicas do ser humano. Acho-o fantástico… Quando o leio sinto uma espécie de afago. Embora sua temática, as ocorrências com as personagens e seus pensamentos sejam abismais, assustadores, sinto-me consolado ao lê-lo.
O que a literatura oriental nos ensina?

Já que você citou o japonês Kenzaburo Oe, o que você acha que nós, escritores ocidentais, podemos aprender com a literatura oriental?
Acho que os escritores ocidentais têm muito a aprender com a literatura oriental, especialmente no que diz respeito à forma, à sensibilidade estética e à maneira como o tempo, o silêncio e a natureza são tratados na narrativa. A literatura oriental, especialmente em tradições como a chinesa, japonesa, indiana e persa (as que mais gosto), oferece perspectivas diferentes sobre o ser, a linguagem e o mundo, desafiando as estruturas rígidas do pensamento linear, da lógica aristotélica (embora dessa eu também goste) e da centralidade do “eu” tão comuns na tradição ocidental.
Acho que um primeiro aprendizado está na valorização do silêncio e do não dito. Gosto especialmente quando a literatura oriental — como nos haicais japoneses ou nos koans do zen-budismo, muito citados em Schopenhauer e o Kung Fu — sugere mais do que afirma, deixando espaços vazios que convidam à contemplação e à interpretação subjetiva. Esse vazio não é ausência, mas potência: aquilo que se sente, mas não se nomeia. Isso pode ensinar ao escritor ocidental a arte da sugestão, da contenção e da economia poética.
A escrita como investigação
Sendo Schopenhauer e o Kung Fu uma história investigativa, qual você acha que é a principal investigação que um escritor de ficção deve fazer?
Interessante sua pergunta. Ao fim acho que toda a literatura é investigativa. Creio que os escritores devam investigar aquilo que têm vontade. Posso falar por mim, por exemplo: interessa-me sobremaneira investigar origens de sentimentos, de sensações, investigar processos históricos que causaram tal ou tal evento, ou, ainda, que causaram tal ou tal sentimento.
Sobretudo, porém, gosto de investigar a própria literatura, perguntar a ela para que serve… Digo desde já que não sei a resposta. Para mim, serve pra dar algum prazer. Eu gosto de ler, de pensar a literatura. É este tipo de investigação que me interessa
“Não conte uma história como quem conta um sonho. Nada é mais tedioso que ouvir os sonhos dos outros.”
Caléu Moraes
Entre verdade e ficção
Em Schopenhauer e o Kung Fu, a inserção de personagens históricos, como o próprio filósofo Arthur Schopenhauer e o ator Jackie Chan, constrói um ar que mistura verdade e invenção. Como você observa a ocupação desses dois espaços na escrita de ficção: a invenção e a verdade?
Gosto de pensar em termos de uma mobilização simultânea destes dois espaços, o da invenção e o da verdade. Mesmo a história, a historiografia (outro tema que me interessa muito e que leio profusamente) é feita (ainda que algum historiador não pareça consciente de tal) por meio da movimentação do autor nestes dois espaços. Podem ser espaços que parecem opostos, mas prefiro pensar em ambos como lados diversos de uma mesma moeda. Yin e Yang. Há um pouco de verdade na mentira e vice-versa. Gosto da literatura em que se faz uma baderna, uma bagunça com estes espaços.

Desde a capa, sabe-se que Schopenhauer e o Kung Fu é um romance. O narrador, porém, se comporta como romancista, historiador, estudioso, pesquisador, como um curioso. Com qual dessas posturas você se identifica mais?
Pra ser bem sincero, com todas. Ora investigador, ora romancista, ora historiador, ora ninja. Na verdade, veja: elas refletem exatamente os meus interesses (ou parte deles), de forma que a literatura, assim, me possibilita invadir espaços que não são costumeiramente associados ao romancista.
Conselhos para escritores
Qual conselho você poderia tirar da sua caixa-preta de escritor para dar aos que lêem essa entrevista e que também escrevem ou querem escrever?
Rapaz, são inúmeros. Aprendi muita coisa nos últimos tempos. Lorde Nélson, meu alter ego, deu-me muitas dicas. Uma delas é: não conte uma história como quem conta um sonho. Nada é mais tedioso que ouvir os sonhos dos outros. Rapaz, há tanta coisa. Aliás, o romance no qual trabalho atualmente tem justamente esta premissa: há um autor, o Natália Moraes, que recebe três escritores famosos que lhe pedem conselhos para escrever a literatura. As demais dicas ficam com o Natália.
| Entrevista organizada ao som do disco A Tábua de Esmeralda, de Jorge Ben Jor |
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