O lado escuro da infância | Entrevista com Verena Cavalcante

Foto: Mauro Figa

Na entrevista que deu ao Programa Roda Viva em 2003, o escritor português José Saramago disse que “a criança cresce mais à sombra do que ao sol”. Com isso, ele ressalta o papel da tristeza e da melancolia no crescimento de uma criança e vai contra a ideia de que devemos forçar uma criança a ser feliz a todo custo.

E são assim os contos da convidada de hoje: repletos de crianças que enfrentam traumas, violências e infelicidades.

Verena Cavalcante (@verena__cavalcante) é autora de Inventários de Predadores Domésticos (Darkside @darksidebooks, 2021), cujos contos mostram como um terror cotidiano pode atingir crianças física e psicologicamente, um terror causado por monstros que estão bem perto da gente: uma mãe, um tio e mesmo outra criança.

Na conversa que tive com ela, falamos sobre a infância como o “molde dos monstros”, sobre a literatura como ferramenta de sobrevivência emocional, sobre algumas de suas referências literárias, como Faulkner, e sobre muito mais.

Vale ler até o final.



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Infância, monstros e a formação do ser humano

A epígrafe do seu livro de contos Inventário de predadores domésticos (Darkside, 2021) diz que “A infância é o molde dos monstros”. Por que esse período é determinante na criação de monstros na vida de uma pessoa?

Oi, Paulo, tudo bem? Muito obrigada pelo convite. Estou super honrada de participar dessa entrevista. Sobre a epígrafe do Inventário de Predadores Domésticos — não sei se você sabe, mas esse livro é uma compilação de dois livros anteriores meus, que são Larva e O Berro do Bode. Essa epígrafe vem de Larva, que, dentro do Inventário, são esses contos narrados do ponto de vista de crianças.

Livro de contos Inventário de Predadores Domésticos, de Verena Cavalcante

Quando eu escrevi Larva, a minha intenção era destrinchar a infância e as violências da infância, que podem, às vezes, passar invisíveis para os olhos dos adultos, de certa maneira, mas que acabam sendo determinantes no que essa pessoa vai se tornar no futuro. Eu queria destrinchar esses horrores da infância por acreditar que é um período basal, que serve de base para a construção do ser humano. É um período como nenhum outro. Porque tudo é novo, não existe o freio de impulso ainda — é uma coisa que também é construída.

Então, às vezes, a criança tem uma natureza tanto benéfica quanto violenta, porque a natureza humana é assim. Nesses contos, a gente encontra crianças vitimizadas e crianças vitimadoras, crianças que também cometem violências contra outras crianças, outros animais, enfim. Eu sempre me interessei muito por psicanálise e pelas teorias freudianas, winnicottianas, junguianas, e também por psicologia criminal. Gosto muito de ler sobre a infância das pessoas que cometem crimes, das que se tornam assassinas em série, enfim. Acho que esse desejo de entender o ser humano, a natureza violenta das pessoas, sempre volta à infância.

Então, na minha literatura, essa temática sempre está ali, mesmo quando eu uso outros recursos, outros temas. O que me fascina são esses deslumbramentos, assombros e horrores da infância. Eu acho que — e aí eu tô falando de mim mesma, né? — que eu nunca fui tão feliz e nunca tive tanto medo quanto quando eu era criança. Então, eu gostaria que a minha literatura fizesse com que os leitores se sentissem assim também. Que os leitores pudessem experienciar uma mistura de fascínio e terror.

E um dos traços mais marcantes dos contos de Inventário de predadores domésticos é justamente a voz das crianças, que muitas vezes contam as histórias. Como foi trabalhar na construção das vozes dessas crianças?

Na época em que eu comecei a escrever Larva, eu estava sofrendo de uma fobia muito incapacitante de aranhas. Foi de 2011 para 2012. Eu estava saindo da faculdade e comecei a trabalhar numa editora especializada em livros de psicanálise e psicologia. Comecei como preparadora, revisora de textos — e sigo essa carreira até hoje, como freelancer.

Essa fobia e esse material foram o que germinaram a sementinha da escrita. Eu já queria escrever algo de minha autoria, porque sempre escrevi — diários, fanfics, histórias sobre minhas amigas e amigos —, mas nunca algo meu. E essas duas coisas — a fobia e a psicanálise — fizeram com que eu tivesse a ideia de escrever esse livro de contos em que as crianças narrariam situações de violência que, no futuro, poderiam vir a se tornar traumas e fobias.

A voz das crianças foi uma coisa muito intuitiva. O primeiro conto que eu escrevi — acho que no Inventário ele tem o nome de “Velório”, o que a menina vai ao velório do avô e encontra uma aranha, enfim — esse conto é bem autobiográfico. Quando comecei a escrever, o que veio pra mim foi essa voz, a voz da criança falando.

Depois disso, todos os outros contos que vieram eram as crianças que falavam. Eu imaginava uma criança em um determinado contexto, lugar do país, época, estado, classe social — e a voz delas me vinha naturalmente. Eu falo brincando com meus amigos que eu incorporava as crianças, que o espírito das crianças vinha, sentava dentro de mim e falava. E eu só transmitia o que elas estavam falando. Foi um processo muito intuitivo, muito orgânico. Não teve planejamento.

E o que você acha que uma pessoa adulta pode fazer com os monstros gerados na infância?

Escrever. Produzir arte em geral. Eu acho que é uma ótima maneira de catarse, de expurgar e de exteriorizar esse monstro, esse trauma, essa violência.

Quarta capa do livro de contos Inventário de Predadores Domésticos, de Verena Cavalcante

Uma coisa interessante sobre o Inventário é que, quando as pessoas leem o livro — a maioria das pessoas que lê e tem o desejo de falar comigo depois — diz que não sabia: “Nossa, eu passei por uma infância super violenta e eu não sabia.” Todos nós passamos por inúmeras violências, porque, por mais que tenhamos tido pais, família, uma rede de apoio super consciente, carinhosa, que supria todas as necessidades — o mundo exterior existe e é muito violento.

O preconceito ou violência racial grita, a violência de gênero grita. Ninguém passa incólume pela vida. Por sorte, a gente tem essas ferramentas, esses recursos. E falar sobre, nem que seja de maneira metafórica ou por meio de outras vias artísticas, é algo que ajuda nesse processo de acalmar o monstro. Faz um carinho aí no monstro.

Linguagem, estilo e oralidade literária

A linguagem coloquial, oralizada, é outra marca que chama atenção nos teus contos. O que te fez optar por essa linguagem?

Quando eu analiso a fundo essa questão, eu penso que talvez tenha relação com a minha avó, porque eu fui criada com ela. E a minha avó é uma grandíssima contadora de histórias. Sempre que eu vou contar uma história, eu penso na minha avó. A minha avó que está falando na minha cabeça, às vezes. Então, me vem muito naturalmente essa voz coloquial. Essa oralidade, para mim, é muito natural por essa questão desse contato com a contadora de histórias da minha família.

Romance O som e a fúria, de William Faulkner

Eu também gosto de fazer uma pirotecnia literária, às vezes. Alguns contos do Inventário são bem pirofágicos, literariamente. E no romance Como nascem os fantasmas, que agora está em pré-venda, eu também transito entre essa oralidade e a pirotecnia literária, que eu adoro. Sou uma metralhadora de adjetivos.

Mas, ao mesmo tempo, acho que talvez tenha a ver com as minhas referências literárias, né? Tem autores que eu gosto muito, que também se apoiam bastante na oralidade. Um dos meus livros favoritos é O som e a fúria, do Faulkner. E eu acho que, não por acaso, quando comecei a escrever, optei por fazer isso. Não que eu tenha qualquer coisa a ver com o Faulkner, jamais. O cara é fantástico, nem tem comparação. Mas, por ser um dos meus livros favoritos, talvez tenha influenciado essa voz. Além, claro, do fato de ter vivido a vida toda com a minha avó.

A ideia de predadores domésticos mostra que os predadores, ou os monstros, podem estar bem mais perto da gente do que a gente imagina. Nos contos, nós vemos pai agressivo, tio assediador, mãe racista, a própria criança que violenta outras. Como identificar esses predadores domésticos na vida real?

Ah, é difícil, porque eles se camuflam muito bem, né? Muitas vezes, eles fingem muito bem, usam uma máscara que convence muito. Mas uma coisa que eu pretendia também com a escrita desse livro, desses livros, é que as pessoas parassem e refletissem sobre o universo infantil e sobre esse mundo invisível da criança.

Isso também inclui ouvir a criança, notar a criança, prestar atenção na criança. Acho que às vezes é mais fácil você dar credibilidade à criança, enxergá-la como um ser humano com respeito, do que tentar encontrar esses predadores, esses agressores — que muitas vezes podem ser o avô, o próprio pai, um irmão mais velho, um vizinho… Então, olhar a criança com atenção, cuidado e respeito — acho que é a melhor maneira de protegê-la.

O terror como incômodo e a construção de um romance

O terror causado por esses predadores permeia todos os contos do seu livro. Nas suas histórias, há tanto o terror físico quanto o terror psicológico. O que você pode dizer que são as marcas fundamentais da escrita de terror?

Quando eu escrevo, eu não começo pensando que vou escrever uma história de horror ou de terror. Eu não tenho isso em mente. O que eu tenho em mente é que vou contar uma história sobre algo que me impressiona, ou me fascina, ou me incomoda. E, a partir daí, a história vai se construindo.

Alguns elementos que a gente encontra na maior parte das narrativas de horror são muito atmosféricos, né? Envolvem uma atmosfera macabra, envolvem atos de violência, envolvem questões que causam medo de fato. Mas eu, pessoalmente, prefiro partir do incômodo. Prefiro partir do que causa perturbação. Mais do que o medo, o incômodo, o desconforto.

Como nascem os fantasmas (Editora Suma, 2025), primeiro romance de Verena Cavalcante

Falando nisso, o seu novo livro, seu primeiro romance, “Como nascem os fantasmas” (Editora Suma, 2025), está em pré-venda. Fala um pouco sobre o que ele é e como foi a escrita dele.

Eu já tinha escrito três livros de contos, e as pessoas sempre perguntando: “E o romance? Você não vai escrever um romance? Puxa, queria tanto que você escrevesse um romance…” E eu tinha muito medo de escrever esse tal romance. Eu não conseguia nem… não tinha uma ideia que se sustentasse.

Então, em 2022, comecei — tive a ideia de um novo livro de contos. E comecei a escrever o primeiro desses contos, que também era um conto meio autobiográfico, cujo nome era “Vovó recebia espíritos”. Nesse conto, eu falo sobre uma noite de apagão, lá nos anos 90, em que a minha avó, que é uma médium física, recebeu um espírito. E eu tive um contato ali com o sobrenatural pela primeira vez.

Comecei a escrever esse conto e ele não acabava nunca. A história foi crescendo, foi aparecendo. Ganhou vida própria e saiu a galope. E eu não consegui controlar. Foi se tornando esse romance, que hoje é o Como nascem os fantasmas.

Nesse livro, eu conto a história da Beatriz, que é uma menina criada pelo avô e pela avó. A avó é uma líder espiritual muito poderosa no interior do estado de São Paulo. Ela só teve uma filha — a mãe da Beatriz — que faleceu durante o parto. A avó nunca superou o luto da filha, e a Beatriz faz de tudo para ser exatamente como a mãe, para se encaixar nesse papel que a avó criou: uma figura idealizada, perfeita, linda, maravilhosa, santificada. E a Beatriz não é bem assim.

Beatriz é, no meu ponto de vista, minha anti-heroína. Na verdade, todos os personagens, com exceção de um nessa história, são ou anti-heróis ou vilões. É um romance de formação, de amadurecimento, de violência. Trago muita violência de gênero. E, como se passa nos anos 90, trago muito das bizarrices da época, dos resquícios da ditadura, de nós sermos filhotinhos da ditadura.

Também tem as maravilhas dos anos 90 — essa vida mais rural, mesmo em cidade. Cresci em cidades pequenininhas do interior, então tinha contato com a natureza, de ficar solta na rua, enfim. Trago isso também pro livro. É um livro com muita nostalgia envolvida. E eu espero que as pessoas sintam vontade de voltar — e, ao mesmo tempo, um pouquinho de medo e vontade de estar lá de novo. 

O processo de escrita foi muito extenuante. Nunca tinha escrito um romance, então foram muitas versões até eu achar o ponto certo, até tudo estar amarrado como deveria. E eu tenho uma filha de seis anos, tenho meu trabalho como tradutora e preparadora — então foi preciso conciliar trabalho, maternidade e escrita. Durou praticamente três anos. Mas eu faria de novo. Tô muito feliz que ele tá aí no mundo. E já tô pensando num próximo romance. Agora não sei se volto mais pro conto, porque peguei gosto pelo Martírio.

Terror latino-americano e conselhos para escritores

Outra boa novidade é que Inventário de predadores domésticos vai ser traduzido para o espanhol. Como você enxerga a escrita de terror na América Latina?

A escritora equatoriana María Fernanda Ampuero, autora de Rinhas de galo e Sacrifícios humanos

Considero isso uma conquista não só minha, mas de todo mundo, porque o nosso trabalho — a literatura de nicho, de gênero no país — é tão marginalizada. É vista como menor dentro do Brasil. E, lá fora, ela nem existe, é invisibilizada.

As autoras argentinas, equatorianas, cubanas, mexicanas — de diversos países de língua espanhola — estão sendo lidas, traduzidas, são muito amadas aqui no Brasil. Ao mesmo tempo, autoras e autores de horror brasileiros são ignorados. Eu sinto que tem aí um viralatismo, uma viralatice, sabe?

Alguns perfis que se dedicam ao horror latino-americano agem como se o Brasil não existisse dentro da América Latina. Os livros brasileiros não são bons o suficiente para serem lidos, discutidos. Não fazem parte dessa safra. E o Brasil produz horror há muito tempo. Ele caminha de mãos dadas com o realismo fantástico.

Vivemos uma realidade muito similar no que diz respeito à desigualdade social, à violência de gênero, aos resquícios da ditadura, ao autoritarismo, ao fascismo. A literatura latino-americana tem uma consonância muito grande, mas ainda não olharam para o Brasil como parte disso.

Inclusive, quando alguém gosta da minha literatura, faz comparações como: “Você se inspirou na Mariana Enriquez, na Mónica Ojeda, na María Fernanda Ampuero…” Claro que eu leio essas autoras, amo essas autoras — assim como leio Shirley Jackson, Angela Carter, Mary Shelley. Mas quando uma literatura estrangeira é boa, ela é boa por si só. Quando a brasileira é boa, é porque dizem que é uma cópia. E isso me incomoda muito.

Meu primeiro livro, Larva, foi escrito entre 2011 e 2012, publicado em 2015. E eu não conhecia essas autoras ainda. Comecei a conhecê-las de 2018 a 2020 pra cá.

Essa tradução só aconteceu porque a María Fernanda Ampuero abriu essa porta para mim ao me convidar para uma antologia chamada Dantescas, que saiu na Argentina e em outros países hispano-hablantes. A partir dela, a escritora cubana Elaine Vilar Madruga me convidou para outra coletânea de uma editora mexicana. E foi assim que o editor conheceu meu trabalho e quis publicar meu livro. Estava tudo interconectado. Porque, por mais que sejamos diferentes, no fim, a América Latina é uma só. E a experiência é muitíssimo parecida.

Qual conselho você poderia tirar da sua caixa-preta de escritora para dar aos que lêem essa entrevista e que também escrevem ou querem escrever?

Meu conselho para aqueles que escrevem ou querem escrever, principalmente quando se sentem sem inspiração ou que a história não encontra o rumo certo, é que devem abrir essa caixa preta. E, quando fizerem isso, vão descobrir que é uma caixa onde guardam todas as memórias, todas as lembranças do passado.

Devem fazer um serviço arqueológico. Uma escavação arqueológica dentro dessa caixa. E lá dentro tem todo tipo de coisa — todo tipo de escombros, ossos, a coleira do primeiro cachorro que já morreu, pilhas de pó, várias figurinhas, gibis da Turma da Mônica com as páginas todas amareladas, os brinquedos favoritos da infância, o nome do primeiro amor. E, ali, no meio de todas essas coisas, você vai encontrar aquilo que você precisa para fazer a história vir à vida. É aí, dentro dessa caixa, que vai estar a inspiração.

| Entrevista organizada ao som do disco Sonido Cosmico, dos Hermanos Gutiérrez |


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