Escrever é um ato de desobediência | Entrevista com Cibele Laurentino

Um dos nomes fundamentais da literatura brasileira – ou da poesia popular, pra ser mais exato, considerando que ele não escrevia suas poesias, e sim as falava, dono, além de tudo, de uma memória extraordinária – e responsável por me iniciar na escrita, Patativa do Assaré é o poeta que trago à memória agora, depois de entrevistar a escritora Cibele Laurentino.

E não é à toa que me lembro do meu conterrâneo, o cearense Patativa do Assaré, porque outro poeta popular nordestino, da Paraíba, foi uma presença fundamental para a nossa entrevistada de hoje. Falo do poeta Zé Laurentino, pai de Cibele.

Foi a partir de uma das poesias de Zé Laurentino que Cibele escreveu o seu romance Nobelina, que ganhou recentemente uma nova edição pela Editora Reformatório (@editorareformatorio) e sobre o qual conversamos.

Falamos também sobre autoria feminina, cultura nordestina, o papel da mulher na sociedade e na literatura contemporânea e a atuação de Cibele como ativista cultural.

Vale ler até o final.



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Seu romance Nobelina nasce em diálogo com o poema de Zé Laurentino, “Eu, a cama e Nobelina”. Como foi esse encontro entre a poesia popular de seu pai e a narrativa que você construiu?

O poema “Eu, a cama e Nobelina” é um cordel do meu pai, escrito em 1960. Ele sempre fez muito sucesso, arrancando risadas, aplausos e pedidos de declamação. Cresci ouvindo esse texto e sempre o associei mais ao aspecto cômico do que ao social.

Romance Nobelina, de Cibele Laurentino

Em 2019, vivendo um luto profundo pela perda do meu pai, revisitei sua coletânea poética e parei nesse poema. Dessa vez, ele não me pareceu engraçado. Passei a enxergar uma crítica social. Imaginei aquela mulher, em 1960, agindo com tanta firmeza e destemor apenas por dançar com outro homem em uma quermesse de cidade pequena.

Ela me pareceu independente, segura de suas atitudes, alguém que não se preocupava com julgamentos alheios. Admirei essa figura feminina que o poema não detalha: não sabemos como foi vista pela sociedade da época. Então comecei a imaginar sua vida, sua cidade, a diversidade social daquele lugar. Dessa releitura e imaginação nasceu a inspiração para escrever o romance.

Em seu livro, a mulher não aparece apenas como vítima, mas também como sujeito de força, desejo e transformação. Como foi construir essa personagem que resiste apesar das dificuldades?

A personalidade de Nobelina foi inspirada na realidade das mulheres — não só as de 1960, mas também as de hoje. A personagem é feminista, visionária, forte e busca transformar a sociedade em que vive.

A cidade onde a história se passa era recém-emancipada, antes chamada Vila da Paz, pertencente a Campina Grande. Nobelina foi criada pensando nesse contexto e também no fato de que, em 1960, vivíamos um patriarcado exacerbado, em plena ditadura.

Ela representa mulheres que enfrentam dificuldades não apenas para conquistar seus objetivos, mas também para buscar dignidade para si e para sua comunidade. Nobelina é, ao mesmo tempo, feminista e feminina — aspectos muitas vezes confundidos como contraditórios, mas que coexistem nela.

A imagem da mulher na literatura brasileira, por muito tempo, foi moldada por escritores homens. Na sua visão, qual é a importância da autoria feminina na revisão dessa imagem e na criação de novas representações?

Acredito que ninguém melhor do que a própria mulher para se contrapor a esse olhar. A perspectiva feminina diante da vida, do patriarcado e do papel social também se reflete na literatura.

Hoje, termos mulheres escrevendo de forma independente, criando personagens que não apenas expressam emoções, mas também representam o contexto social, é de enorme importância.

Nobelina sonha em ser professora e enfrenta o peso de uma sociedade machista e desigual. Nesse enfrentamento, há algo que se conecta com a realidade da sua própria trajetória de vida como artista e como mulher?

Acredito muito na escrita como expressão profunda e emocional. Eu mesma comecei a escrever movida por dois sentimentos: primeiro a dor da saudade, depois a indignação e a admiração pela personagem criada pelo poeta.

Quando escrevemos, é impossível não trazer lembranças ou memórias, mesmo sem a intenção de fazer autoficção. Essa personagem me tocou porque também sou essa mulher feminista, engajada, preocupada com as mudanças sociais e atenta às diversidades. Mas, ao mesmo tempo, também sou vítima de um patriarcado que marcou não apenas a sociedade, mas também o ambiente familiar.

Cresci em uma criação altamente preconceituosa e rígida sobre o que eu deveria ser como mulher e mãe. Isso também é Nobelina. Infelizmente, ainda hoje muitas mulheres carregam sequelas de um patriarcado que remonta a 1960 e que persiste em pleno século XXI.

Seu romance mergulha em questões sociais e de gênero e, ao mesmo tempo, valoriza o cenário e a cultura nordestina. Como você enxerga esse equilíbrio entre universalidade de temas tão abrangentes e o regionalismo da cultura nordestina?

Muitos consideram Nobelina um romance regionalista. Eu prefiro pensar nele como um romance universal. Sim, ele é ambientado no Nordeste, mas, assim como outros romances se passam no Sudeste ou no Centro-Oeste, o essencial é que trata de temas que não pertencem apenas a uma região.

Questões sociais, preconceitos e desigualdades são universais. Ainda assim, a força da cultura e do folclore nordestino está muito presente, e eu quis valorizar essa identidade. Quando escrevi, não pensei em rótulos, mas em criar um texto que pudesse incluir, impactar e gerar reflexão em qualquer lugar.

Você é filha de um poeta popular, Zé Laurentino, e de alguma forma carrega essa herança da oralidade e do cordel. De que maneira essa raiz influencia a sua maneira de escrever histórias e de criar personagens?

Coletânea poética do poeta popular paraibano Zé Laurentino

Cresci cercada de cordelistas e poesia popular. Bebi dessa fonte. Mas o cordel não interferiu diretamente na minha poesia, que segue versos livres. Já na prosa, percebo a presença da poesia, sim, mas não do cordel em si.

A influência maior veio da postura crítica do meu pai. Apesar de usar o humor no cordel, ele também trazia muitas questões sociais. Isso respingou na minha escrita: sempre há indignação, crítica e até raiva contra as injustiças.

No caso de Nobelina, houve influência direta do cordel, já que a personagem nasceu desse poema. Mantive elementos como o dialeto, a ambientação no interior e até a voz do narrador, que é um poeta. O livro começa com o narrador dizendo: “Vou deixar minha poesia para te contar uma história”. E termina com o cordel Eu, a cama e Nobelina. Ou seja, a própria narrativa tem a marca do cordel.

Além de escritora, você também é ativista cultural e trabalha no Instagram com a divulgação de escritores e escritoras, além do projeto Conversando com Escritores, online e presencial. Como essa atuação nas redes sociais dialoga com a sua visão sobre a literatura?

Quando comecei a divulgar meu trabalho na internet, percebi a imensa dificuldade de conquistar espaço. A literatura é um caminho estreito, ainda mais para quem está começando. Minha saída foi criar lives, que não apenas abriram espaço para mim, mas também para outras escritoras em situação semelhante.

O projeto cresceu, a demanda aumentou, e passei a me profissionalizar para oferecer um trabalho mais qualificado de divulgação. Hoje, além de monetizado, é algo que faço com muito amor.

Divulgar literatura, especialmente escrita por mulheres, é também um ato político. Muitas sempre tiveram dificuldade não só de publicar, mas até de escrever, já que escrever significa encarar o que está dentro de si e também o que está fora. Hoje vemos cada vez mais mulheres publicando, e considero isso um grande ato de desobediência ao patriarcado: mulheres escrevem, publicam e são lidas por outras mulheres. Meu trabalho é, portanto, também uma contribuição a esse grito coletivo.

Como escritores e escritoras podem entrar em contato com você para divulgar seus livros?

É simples: basta me chamar no direct do Instagram (@cibelelaurentino). Estou sempre à disposição para organizar um trabalho direcionado.

Hoje você participa de projetos que aproximam leitores e escritores contemporâneos. Se pudesse resumir, qual seria o legado que você gostaria de deixar como escritora e como ativista cultural?

Como escritora, quero deixar registrado todo meu incômodo social, minha indignação diante dos preconceitos e a oportunidade de voz e fala. Literatura é isso: dar voz.

Como ativista cultural, quero deixar espaços abertos para os que virão depois de mim, assim como outras mulheres abriram espaço para mim. Meu legado é fomentar a literatura, a leitura e a mudança.

| Entrevista organizada ao som do disco Novo Mundo, de Arnaldo Antunes |


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