Brigar com a escrita | Entrevista com Tiago Germano

Tiago Germano (@tdgermano) é autor do volume de contos Catálogos de Pequenas Espécies (2021) e da coletânea de crônicas Demônios Domésticos (2017), indicada ao Jabuti. Pela Moinhos, o autor publicou o romance A Mulher Faminta (2018), sua estreia no gênero. É escritor e jornalista, com doutorado em escrita criativa pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e estágio na School of Drama and Creative Wrhiting da University of Easty Anglia, na Inglaterra, por onde passaram nomes como Kazuo Ishiguro e Ian McEwan. Nasceu em Picuí, no interior da Paraíba, e mora atualmente na Capital, João Pessoa, onde é cofundador da Edícula Literária.

Para ele, o papel do escritor, como intelectual, é “defender a democracia que vem sendo atacada a ponto de nossa própria existência como escritores estar também ameaçada.” E segundo Tiago, “quase todas as línguas que estão falando de literatura agora estão falando na verdade de outra coisa, quase sempre de mercado.”



O que a escrita causa em você?

Ela me dá um senso de pertencimento. O Javier Marías, que faleceu há pouco, dizia que há vários motivos para não escrever, e só um para escrever: viver boa parte do tempo instalado na ficção, seguramente o único lugar suportável para um escritor viver. O senso de pertencimento que não temos neste mundo, um território cada vez mais inóspito para alguém que convive a maior parte do tempo com pessoas que não existem, numa realidade que não existe e que tem pouco impacto material na realidade que vivemos — para além do impacto simbólico (que já é muita coisa) — esse senso de pertencimento, nós, escritores, só encontramos na ficção.

Qual a maior aventura de um escritor?

Penetrar surdamente, como diria Drummond, no reino das palavras e da literatura que não foi escrita. Porque responder simplesmente “escrever” poderia soar como uma platitude, e não é: quase tudo já foi escrito por escritores mais competentes, escrevemos nos ombros deles e só ouvimos os seus ecos. Não é porque a ficção é um lugar suportável que sua tarefa de transitar por ela vai ser mais fácil.

Que livro você gostaria de ter escrito?

Todos os que ainda não escrevi. É para isso que escrevemos: para ter em nossa biblioteca o livro que ninguém além de nós será capaz de criar.

Que livro você jamais escreveria?

Até os piores livros escritos são provavelmente melhores que os livros jamais escritos.

O que ainda falta ser dito em literatura?

Como vê, não acredito muito que falte algo a ser dito, mas formas diferentes de se dizer a mesma coisa. Todos tecemos no mesmo manto histórico em que Roland Barthes fez seu ponto: o texto é um tecido, uma colcha de retalhos ancestral. Falamos da mesma boca dos arautos, dos nossos antepassados ao redor da fogueira. Agora uma coisa que eu gostaria especialmente de dizer hoje é que quase todas as línguas que estão falando de literatura agora estão falando na verdade de outra coisa, quase sempre de mercado.

Livro bom é…

livro aberto, como disse em uma de minhas crônicas. Livro em biblioteca é livro engaiolado, fora de seu hábitat.

Escritor é uma criatura…

…inconformada e persistente. Quando Philip Roth se aposentou, ele conservava no birô um bilhete que o impedia de continuar a escrever: “A briga com a escrita acabou”. Escrever é lidar diariamente com o fracasso de perder a briga. Só alguém muito inconformado e persistente continua lutando.

Qual o papel de um escritor na sociedade?

Gosto da ideia da Filipa Leal de que o escritor é também um intelectual, e se, como escritor, ele não precisa necessariamente se comprometer com um “papel”, sob a pena do panfletarismo; o intelectual, sim, deve se comprometer. É por isso que há obras políticas que não são panfletárias: são feitas por escritores que não perdiam de vista seus papéis como intelectuais (Orwell, por exemplo). Tal papel é por natureza transitório, acompanha nossa evolução material como sociedade. Hoje acho que todos temos um papel, como intelectuais, de defender a democracia que vem sendo atacada a ponto de nossa própria existência como escritores estar também ameaçada. Ser antifascista, hoje, é nossa condição de existência.

Qual o maior aliado de um escritor?

A janela.

Como encontrar a palavra certa, o termo justo, a frase ideal?

Flaubert almejava a isso e hoje é provavelmente conhecido fora do mundo pelas palavras que deram, as que tradutores menos hábeis que ele encontraram. Se perseguirmos muito a sério essa ambição, vamos todos nos transformar naquele personagem de Camus que tinha a frase perfeita para abrir o seu romance, mas como ela sempre mudava, o romance nunca chegava ao fim. O limite do nosso mundo é o limite da nossa linguagem e pensar, infelizmente, já é falhar. Escrever não seria diferente.

O quê que não dá para ser dito com palavras?

Até Deus precisou do verbo para inventar o mundo. Deus se diz verbo, aliás. O que não dá para ser dito com palavras ainda está para ser inventado. Quando da invenção de Macondo, por exemplo, García Márquez diz que o mundo era tão recente que muitas coisas ainda não tinham nome e para mencioná-las era preciso apontar o dedo. Gosto da imagem, mas nosso mundo já está velho demais e talvez só inventemos coisas novas pelo prazer de de apontar o dedo e dizer novas palavras.

Se você pudesse, o que diria para o algoritmo?

Se eu pudesse eu acabaria com o algoritmo. Não seria exagero dizer que é a bomba atômica da nossa geração.

E se você pudesse mudar o lema da bandeira nacional para um que representasse o Brasil atual, para qual seria?

Embora até então eles sejam inúteis, eu prefiro concentrar meus esforços em mudar as cabeças que se apropriaram dela e que agora mesmo, enquanto estou respondendo a essa entrevista, estão promovendo a desordem e o retrocesso agitando uma.

Qual a sua maior alegria ao escrever?

Ler algo que eu escrevi no dia anterior e não me arrepender.

Se você não pudesse mais escrever, o que faria?

O que faço quando não estou escrevendo: leio.

A literatura em uma palavra.

Leitura.

Qual a coisa mais importante que você aprendeu com a escrita?

A fracassar. E diante do fracasso, como dizia Beckett, tentar outra vez, fracassar de novo, fracassar melhor. Ou, como diria Oz, abrir sempre a bodega, venham ou não venham os clientes.

O que faz você continuar escrevendo?

A certeza de que ainda não ganhei a briga e sequer apanhei o bastante para parar.


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