A obrigação íntima do artista | Entrevista com D. B. Frattini

Foto: Adriana Zutini.

Comparando poesia e ficção, o escritor e professor Luiz Antonio de Assis Brasil, em seu livro Escrever ficção, disse que que “se o poeta necessita de muita sensibilidade, muita leitura, muita franqueza, o ficcionista precisa disso e mais: muita vivência.”

Nosso entrevistado de hoje, o escritor D. B. Frattini (@dbfrattini), carrega essa vivência nas palavras e nos temas do seu romance História de H. (Patuá, 2024 @editorapatua). Ele tem décadas de observação, ironias e epifanias — e transforma tudo isso em literatura.

H., seu protagonista, é um sexagenário que encara a velhice, o luto e a solidão cercado por cães, memórias e sessões com um psiquiatra. Mas também é um homem que pensa demais, sente demais e resiste — com humor, com palavras, com um tipo de lucidez que fere e ilumina ao mesmo tempo.

Na conversa que tive com Frattini, falamos sobre envelhecimento, ironia, dor, escrita, teatro e sobre muito mais.

Vale ler até o final.



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No seu romance História de H., H. é um sexagenário marcado pelas consequências físicas e emocionais da velhice. Como você, enquanto autor, vê a velhice no contexto social contemporâneo?

História de H. é realmente um romance que se prende à problemática do etarismo, desse problema da maneira muito errática como as pessoas veem os velhos, quem está entrando nessa coisa da idade mais elevada. Mas eu não vejo essa questão com muita crítica, não. Estou envelhecendo, já estou na terceira idade. E retrato um pouco aquilo que penso a respeito, que às vezes não é o do senso comum. Mas penso que seja sempre um problema muito sério a maneira como se trata a velhice e o desrespeito que existe com as pessoas com mais idade — principalmente no Brasil, e em todos os países que praticam o neoliberalismo.

O que você acha que existe de limitador e de libertador na velhice?

Romance História de H., de D. B. Frattini

Deveria existir uma certa liberdade, uma compreensão maior da humanidade, uma série de qualidades para o ser humano. Mas a gente é sempre arrastado pela questão do contexto, o lugar onde se vive. E a gente tem que ser realista com relação ao ponto do planeta onde estamos. Nesse sentido, o Brasil é terrível — mas é terrível mesmo — com as pessoas mais longevas.

De alguma forma, a gente percebe uma ironia e uma crítica na sua resposta. E a ironia aparece como um recurso narrativo fundamental em História de H. Qual é o papel da ironia na forma como H. encara suas próprias tragédias e situações adversas?

Não dá para ser diferente. A ironia, nesse sentido, é importantíssima. As pessoas, para sobreviver no meio de tanta diversidade, têm que ter um pouco de humor. E o humor por aqui tem que ser um humor meio negro, que é meio confundido com ironia. Mas a ironia faz parte do meu trabalho mesmo.

Quarta capa do romance História de H., de D. B. Frattini

Fui dramaturgo durante muitos anos e sempre lidei com tragicomédias. Tenho a ironia como instrumento de trabalho para atingir o leitor. Acho isso muito importante. Aliás, penso que a única maneira de conseguir atingir o leitor de maneira significativa é através da ironia.

Então fala um pouco como a sua prática e a sua vivência como dramaturgo influencia ou interfere na escrita do romance.

São gêneros completamente diferentes, não existe muito grau de comparação. No teatro, você fala diretamente com o espectador. No romance, pode usar de recursos romanescos para chegar a um determinado objetivo. Há 20 anos fiz minha última experiência no teatro. Agora está saindo pelo grupo editorial Caravana a minha primeira peça de teatro — uma tragicomédia em três atos — que será publicada no Brasil. Tenho outras publicações na Itália, na Inglaterra. Mas no Brasil é a primeira vez.

Não sei dizer onde interfere, onde começa ou termina essa ligação com o teatro. Ela faz parte de tudo na minha trajetória como escritor. Tenho quase 40 anos de profissão. Mas é diferente. No romance, a gente tem que trabalhar o pensamento de forma muito severa. No teatro, a gente é muito ligado a epifanias: sente e expressa. Acho que é por aí que funciona

A perda de entes queridos pode criar um vazio difícil de preencher, e H. parece viver com esse vazio com a perda da esposa e do filho. Você acha que o luto pode afetar a vida de uma pessoa de forma irreversível?

Claro. O luto afeta de forma total a vida de uma pessoa. É uma questão muito sensível para o ser humano. A questão do luto se reflete em tudo. Depois da passagem de um ente querido, você se transforma em outra coisa, praticamente. Esse é um tema muito recorrente na literatura.

Mas acho que, no livro, trato do luto com uma certa licença — até moral. Porque já tenho certa idade e passei por muita gente que se foi. E penso mesmo que cada morte na sua vida é a descoberta de um novo sentido, é a procura de um novo sentido.

Para lidar com o luto, entre outras coisas, o personagem H. faz tratamento psicológico, realizado com o Dr. Edgard. E muitas vezes, as conversas com o psiquiatra são momentos de tensão. O que a psicoterapia representa para você dentro da construção da história?

Eu não pratico autoficção. Embora tenha muita experiência de vida e muitos anos como escritor, nunca me liguei à tal da autoficção. Não sei fazer isso.

A psiquiatria é um instrumento de trabalho para o ficcionista. Posso ser meio mal interpretado, mas é a loucura. A psiquiatria tem um sentido maior dentro dessa situação, em que se procura ajuda para sobreviver ao próprio caráter. Um bom psiquiatra tem esse poder de ajudar a pessoa a voltar a caminhar, colocar o homem de novo em pé.

Dentro do romance, lido com muito questionamento — inclusive sobre a própria psiquiatria. Mas é por conta da projeção da história mesmo.

Outra marca narrativa do seu livro é o fato de o narrador, o próprio H., passear entre os assuntos mais diversos entre um parágrafo e outro, ou dentro de um mesmo parágrafo. O que motivou essa escolha de estrutura narrativa errante?

O livro é polifônico. É um estilo que tenho de escrever. Meus romances são feitos, na maioria das vezes, por monólogos interiores, que exploram um fluxo de consciência muito preciso. Os personagens estão dançando entre um e outro porque é importante fazer o protagonista refletir sobre o pensamento do interlocutor. Faço muito esse jogo silógico. Crio muitas premissas entre um personagem e outro. É a tal da polifonia. Não consigo me libertar dela. Acho que é uma maneira muito boa de retratar a condição do ser. Isso reflete também a ação dramática — profundamente ligada ao enredo, aos conflitos, às falhas trágicas. É uma maneira meio exuberante, mas funciona.

H. tem três cachorros, Nina, Lua e Vito, que são o xodó dele. Você acha que os animais de estimação oferecem pra gente algo que as pessoas ao nosso redor não conseguem oferecer?

São anjos, compreende? Os cães, os gatos, os pets em geral são figuras importantíssimas dentro da vida da gente. Oferecem aquilo que um ser humano jamais oferecerá: um amor incondicional, uma falta de cobrança. Não existe meio-termo entre você e seu animal de estimação. Ele é seu e você é dele, completamente. Isso é um presente. É uma das maravilhas da natureza.

Qual conselho você poderia tirar da sua caixa-preta de escritor para dar aos que lêem essa entrevista e que também escrevem ou querem escrever?

Agora, eu podia fazer piada: “Escolhe outra coisa para fazer!” Mas não é bem por aí. Quando lidamos com a palavra, temos que entender que somos movidos por uma obrigação íntima. Não escrevemos para fazer sucesso, ser lido, ser discutido, ou ser importante. A gente tem uma obrigação íntima de lidar com a palavra.

Existe uma vicissitude aqui no nosso país: não considerar os escritores como artistas. Em primeiro lugar, o escritor deve entender que é um artista. E, para isso, precisa de muito tempo de reflexão, muita entrega ao próprio dom. Comecei nos anos 80, fim dos 70. Era muito difícil conseguir publicações. Com o tempo, ficou mais fácil. Mas a questão não é a facilidade, nem as editoras. Isso não importa. Você tem que lidar com a sua obrigação íntima com a escrita. É ter o que dizer — mais importante do que publicar um livro.

Talvez seus leitores notem: estamos, geração após geração, escrevendo o mesmo livro. São questões repetidas na literatura. É difícil conseguir algo mais elaborado. Por isso, é importante buscar originalidade.

É muito difícil dizer o que faz de alguém um escritor, ou o que esse escritor tem que fazer. Mas afirmo: há uma obrigação íntima do artista de realizar seu trabalho e entregá-lo ao outro — sempre imaginando que o outro é mais importante que o eu daquele que escreve.

É complicado, mas é de suma importância que se escreva muito mesmo. Quanto mais escritores, mais uma nação se revigora e prospera. Temos que fugir da falta de cultura e do analfabetismo que andam por aí.

| Entrevista organizada ao som do disco The Universe Smiles Upon You, de Khruangbin |


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3 comentários

  • Ivana

    Sem dúvida, lidar com as palavras é uma ARTE. Benditos sejam esses artistas que nos oferecem a possibilidadede de “vivenciar” tantas questões caras à sociedade.
    Terminei de ler “História de H”, é um livro excelente. Artista espetacular.

  • Ezus

    Conheço parte da produção de Frattini dos últimos anos, assim como alguns textos mais antigos. Posso afirmar, sobre sua escrita, que ela é de uma consciência nítida e constante. O autor de tem características que se mantêm em várias de suas obras, algumas das quais tive o prazer de ler antes da publicação, tais como a ironia e o humor ácido. Sem dúvida é uma leitura essencial para quem deseja chegar mais perto dos submundos da classe média-alta, que é geralmente a classe social sob a qual o ponto de vista de seus livros muitas vezes se debruça.

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